Farpas Literárias
De um lado, o Nobel José Saramago. Do outro, o eterno candidato António Lobo Antunes. O que têm em comum os dois dos maiores vultos da Literatura Portuguesa? Apenas a Literatura.
A rejeição do livro
“Fomos dar prendas a famosos”. A manchete da revista Tal & Qual de 1998 prometia uma brincadeira que daria muito que falar… e que acabaria mal. Em pleno espírito natalício, a publicação decidiu oferecer a Saramago um livro de António Lobo Antunes como presente de Natal. E a porca torceu o rabo: Saramago recusa o presente, dizendo “Tome, não aceito e considero isto uma provocação”.
Parodiando o livro vencedor do Nobel da Literatura, Levantado do Chão (1980), a revista escolhe o título “Atirado ao Chão”, para a estória publicada. Na realidade, Saramago não atirou o livro ao chão, mas recusou-o. Com ou sem intenção, a revista lançava as hostes para a discórdia.
A provocação, porém, pareceu não causar reações do outro lado literário, e o assunto parecia quase esquecido. Ou talvez não.
Só muito mais tarde, em 2008, é que António Lobo Antunes pareceu reagir. O escritor confessava a Carlos Vaz Marques da revista LER que nem sequer conhecia a obra de Saramago, mas que certa vez vira uma fotografia dele a atirar um livro seu ao chão. Quase se arrependendo no momento seguinte, rapidamente acrescentava: “Deu-me vontade de rir. Mas o homem nem sequer me é antipático. Eu não o conheço.”
José Saramago não tardaria a responder, também numa entrevista para a revista LER: “Não lhe chamemos assim. Amizade, não. Isso são palavras maiores. Um contacto cordial”.
A rivalidade nunca seria publicamente assumida por qualquer das partes. Ainda assim, os dois escritores não se pouparam em lançar algumas farpas nas entrelinhas de esporádicas entrevistas.
A questão pessoal impunha-se sobre a questão profissional. Os estilos de ambos sempre divergiram. José Saramago foi conhecido por utilizar um estilo oral, em que a vivacidade da comunicação é mais importante do que a correção ortográfica de uma linguagem escrita. Já a escrita de António Lobo Antunes é marcadamente densa, sendo o seu percurso pautado por uma contínua renovação linguística.
Além de escritor, José Saramago foi jornalista, dramaturgo e poeta. Assumido militante do Partido Comunista Português (PCP), era também um ateu convicto. Na sua incursão pelo jornalismo, colaborou como crítico literário na revista Seara Nova, em 1972 e 1973 fez parte da redação do jornal Diário de Lisboa, onde foi comentador político, tendo também coordenado o suplemento cultural do vespertino.
Entre abril e novembro de 1975 foi diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias, título que lhe valeu uma certa reputação… mais polémica. José Saramago pretendia que o DN fosse “um instrumento nas mãos do povo português, para a construção do socialismo” e que quem não estivesse empenhado, melhor faria em abandonar o jornal. Quando um grupo de jornalistas entrega um documento a exigir a revisão da linha editorial do jornal, nada fazia prever o resultado: a suspensão de 24 jornalistas, um episódio que ficaria conhecido como o “saneamento dos 24” e que faria correr muita tinta.
A partir de 1976, passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, e em 1988 casou com Pílar del Rio. A 29 de junho de 2007 constitui a Fundação José Saramago para a defesa e difusão da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos problemas do meio ambiente. Com a morte do escritor em 2010, Pílar del Rio abre as portas da Fundação José Saramago ao público na Casa dos Bicos, em Lisboa.
Por seu turno, António Lobo Antunes licenciou-se em Medicina, com especialização em Psiquiatria, profissão que exerceu até 1985. Foi ainda Tenente e médico do exército Português em Angola durante a Guerra Colonial, temas que utilizou em abundância na sua escrita.
Apesar de terem 20 anos de diferença, ambos tiveram o seu apogeu literário nos anos 80 e talvez por isso tenham afiado as farpas que atiravam um ao outro. Saramago alcançou mais reconhecimento quando venceu o Nobel da Literatura, em 1998, com a obra Levantado do Chão. Já em 1995 tinha sido galardoado com o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da Língua Portuguesa. Para além do reconhecimento internacional incontornável da sua prosa em Língua Portuguesa, José Saramago consagrou-se através da sua forma muito peculiar de escrever.
Apesar de não autorizar a aplicação da ortografia, semântica e sintaxe brasileiras às suas obras, deslocou-se várias vezes ao Brasil para participar em conferências e palestras. António Lobo Antunes, neto de um brasileiro, mantinha um raro contacto com o Brasil.
Quando questionado sobre esta questão por um jornalista brasileiro, respondia com certa altivez: “Eu sou um homem generoso. Resolvi deixar o Brasil para Saramago, coitado, e ficar com o resto do mundo”.
O atrito entre ambos era bastante público. Em 2008, a equipa do “Vai Tudo Abaixo na América”, um programa humorístico da SIC Radical, pregou uma partida ao escritor António Lobo Antunes. Na série feita nos EUA, Lobo Antunes foi entrevistado por Wanderley Furacão, um brasileiro xenófobo que não gosta de portugueses, personagem interpretada por Jel, humorista e autor do programa. O escritor, que estava na Public Library em Nova Iorque a apresentar a sua obra, foi, propositadamente, confundido com o rival José Saramago. As referências ao trabalho e reconhecimento de Saramago foram mais do que muitas, mas o nome do escritor nunca foi pronunciado em toda a “entrevista”.