Fátima e a Política: "Sua Eternidade" Salazar

Fátima foi associada ao regime salazarista, sobretudo por sectores ligados à oposição ao Estado Novo. No entanto, a única deslocação mediatizada de Salazar a Fátima ocorreu só no penúltimo ano do seu longo consulado, a 13 de maio de 1967, para acompanhar a visita de Paulo VI ao santuário.

E mesmo nessa ocasião o velho ditador só ali se deslocou com muita relutância. Como documenta o seu ministro dos Negócios Estrangeiros à época, Alberto Franco Nogueira, Salazar sentia uma forte antipatia pelo Papa, que considerava «anti-português». Tudo porque Paulo VI visitara Bombaim em 1964, menos de três anos após a invasão de Goa, Damão e Diu pelas forças militares indianas.

Paulo VI também fez questão de se demarcar do regime salazarista. Recusou deslocar-se a Lisboa. O avião papal aterrou no aeroporto militar de Monte Real, a poucas dezenas de quilómetros de Fátima, e foi também lá que o Sumo Pontífice retornou na viagem que ainda nesse dia o conduziu de volta a Roma. Preferiu ser hóspede do bispo de Leiria por algumas horas do que do Governo.

O cumprimento trocado na ocasião com Salazar foi meramente protocolar. E nada efusivo de qualquer das partes.

Igreja e Estado

Há no entanto um conteúdo marcadamente político em torno dos acontecimentos de Fátima.

As aparições ocorrem em 1917, um ano sangrento, com o mundo em guerra.

Pouco antes, nesse mesmo ano, o czar Nicolau II fora derrubado por uma revolução de carácter reformista na Rússia. E meses depois, ainda em 1917, deflagraria ali a revolução comunista conduzida por Lenine que daria origem à União Soviética.

Em Portugal vivia-se o período mais tenso das relações entre o Estado e a Igreja Católica. Iniciado pouco depois da proclamação da república, em 5 de Outubro de 1910, com a Lei da Separação das Igrejas e do Estado levada à prática pelo ministro da Justiça e dos Cultos, Afonso Costa.

Com data de 20 de Abril de 1911, esta lei impunha estes princípios gerais:

- O fim do catolicismo como religião do Estado em Portugal;

- O Estado deixava de subsidiar as igrejas;

- Todas as catedrais, igrejas e capelas, salvo em casos excepcionais, passavam a ser propriedade do Estado, que poderia destinar-lhes outros fins;

- Ficavam praticamente interditos todos os actos de culto fora dos templos (procissões, por exemplo);

- Era fortemente restringida, excepto no interior dos templos e nos cemitérios, a exibição de símbolos religiosos ou ligados ao culto católico (paramentos, crucifixos, toques de sinos);

- O registo civil tornava-se obrigatório, substituindo-se à Igreja.

Anticlericalismo feroz

Os conflitos entre Igreja e Estado aumentaram. Seis bispos são expulsos das suas dioceses. O cardeal-patriarca de Lisboa, D. António Mendes Belo, e o bispo do Porto, D. José Barroso, são forçados a exilar-se. Em 1913, registou-se o corte de relações diplomáticas com a Santa Sé que haviam sido estabelecidas no século XII.

É neste enquadramento que ocorrem as aparições de Fátima. Ainda em 1917, as multidões que começam a acorrer à Cova da Iria – designadamente a 13 de outubro, quando ali se juntam pelo menos 50 mil pessoas – desafiam claramente a letra e o espírito da Lei da Separação, que forçava as autoridades civis a tomar providências. Daí a reclusão dos três pastorinhos ordenada por alguns dias, em agosto de 1917, pelo administrador do concelho de Ourém.

O regime republicano encarou com máxima desconfiança o fenómeno de Fátima. Desconfiança que tinha reflexos na imprensa mais conotada com o regime.

«A raça dos impostores, que é a causa da religião, e das crenças católicas de certo povo bisonho, tem exercido a sua indústria através dos tempos (…). Abra o povo os olhos e corra a chicote os charlatães que negoceiam com a sua crença», proclamava em Agosto de 1917 o jornal O Mundo, muito ligado ao Partido Democrático, de Afonso Costa. Num artigo intitulado «Impostores!»

Nessa data, quando tinham ocorrido apenas três aparições (maio, junho e julho), já o nome de Fátima começava a divulgar-se, em larga medida também graças à imprensa republicana, jacobina e ferozmente anticlerical. Que acabou assim por produzir um efeito oposto àquele que pretendia atingir.

As trincheiras da guerra

As tensões entre a Igreja e o Estado amainam logo após a última aparição, ocorrida a 13 de outubro de 1917, quando uma multidão avaliada entre 50 mil e 70 mil pessoas testemunha o chamado «milagre do sol», noticiado a todo o País por um dos mais credenciados jornalistas da época, Avelino de Almeida, enviado do matutino O Séculoà Cova da Iria.

Eis um excerto dessa reportagem, que se tornou uma das mais célebres de toda a história da imprensa portuguesa:

«Assiste-se então a um espectáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha d’ ele. Do cimo da estrada, onde se aglomeram os carros e se conservam muitas centenas de pessoas, a quem escasseou valor para se meter à terra barrenta, vê-se toda a imensa multidão voltar-se para o sol, que se mostra liberto de nuvens, no zenit. O astro lembra uma placa de prata fosca e é possível fitar-lhe o disco sem o mínimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-hia estar-se realisando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta, e aos espectadores que se encontram mais perto se ouve gritar: ‘Milagre, milagre! Maravilha, maravilha!” Aos olhos deslumbrados d’aquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o sol tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos fóra de todas as leis cósmicas – o sol ‘bailou’, segundo a típica expressão dos camponeses…»

Sete semanas depois, por assinalável coincidência, chegava ao fim o período mais anticlerical da I República. Com o golpe de Estado de Sidónio Pais, a 5 de dezembro de 1917, as relações entre o poder político e a Igreja Católica normalizaram-se. A Lei da Separação foi modificada e suavizada. Restabeleceram-se as relações diplomáticas com a Santa Sé, em julho de 1918, com a chegada a Lisboa de monsenhor Benedetto Masella – mais tarde cardeal carmelengo – para assumir funções de representante do Vaticano em Portugal.

Em 29 de julho de 1919, numa carta apostólica, o Papa Bento XV reconhecia finalmente a República Portuguesa.

Para este degelo muito contribuíram os soldados portugueses que combatiam nas trincheiras da Flandres em plena I Guerra Mundial. Esses militares exigiam com frequência a presença de sacerdotes como capelães, à revelia da Lei da Separação.

Foi um exemplo claro de insucesso das imposições legais de um Estado que pretendia laicizar à força uma sociedade que continuava a ser maciçamente católica.

Salazar e o Papa

Ao contrário do que sucedera na visita a Bombaim, quando entregou ao Presidente indiano a mais alta condecoração da Santa Sé a não-cristãos, o Papa não condecorou nenhum político português. Limitou-se a depor na imagem da Virgem, na capelinha das aparições, um rosário de prata que trouxera de Roma.

Ficou claro, desde o primeiro minuto, que não se tratava de uma visita de Estado. Foi o presidente do Conselho a deslocar-se de Lisboa a Fátima para ver o Papa e não o contrário.

Salazar ficou também muito irritado quando soube que Paulo VI solicitara a presença da Irmã Lúcia na tribuna de honra erguida em frente da basílica. A par das entidades oficiais.

E certamente não terá gostado da homilia papal.

«Tudo parece impelir o mundo para a fraternidade, para a unidade; no entanto, no seio da humanidade, descobrimos ainda tremendos e contínuos conflitos. Dois motivos principais tornam, por isso, grave esta situação histórica da humanidade: ela possui um grande arsenal de armas terrivelmente mortíferas, mas o progresso moral não igual o progresso científico e técnico. Além disso, grande parte da humanidade encontra-se ainda em estado de indigência e de fome, ao mesmo tempo que nela se acha tão desperta a consciência inquieta das suas necessidades e do bem-estar dos outros. É por este motivo que dizemos estar o mundo em perigo. Por este motivo, viemos nós aos pés da Rainha da Paz a pedir-lhe a paz, dom que só Deus pode dar».

Palavras do Sumo Pontífice proferidas na época em que Portugal travava uma guerra em três frentes contra os movimentos nacionalistas em África.

Deus e César

«Só podemos entender bem a relação entre Salazar e Paulo VI, em primeiro lugar, a partir da visão do mundo e da vida que tinha Salazar, que não admitia a intervenção da Igreja nos assuntos do Estado. Havia uma espécie de anticlericalismo provinciano». Palavras de um homem que conheceu bem o ditador: Adriano Moreira, secretário de Estado da Administração Ultramarina e ministro do Ultramar entre 1958 e 1962.

Numa entrevista à Rádio Renascença em Outubro de 2014, conduzida pela jornalista Aura Miguel, Adriano Moreira acentuou: «É bom perceber a separação - a César o que é de César, a Deus o que é de Deus - no julgamento de Salazar e compreender que, nestas atitudes, era a concepção que Salazar tinha do Estado, por desfasada que estivesse da evolução do mundo, que levava a esse choque».

Na breve audiência de dez minutos que concedeu ao ditador, segundo este confidenciaria a Franco Nogueira, Paulo VI chamou-lhe «Vossa Eternidade».

Alusão que não pode ser entendida sem alguma ironia. Naquele ano Salazar completava 39 anos ininterruptos no Governo…