João Paulo Guerra
1942 – 2024
Foi unânime. Chegou de todas as (muitas) partes daquilo a que chamamos “a classe”.
Uma homenagem a João Paulo Guerra, com testemunhos de Luís Paixão Martins, Coronel Carlos Matos Gomes, Adelino Gomes, Maria do Céu Guerra, Eugénio Alves e António Macedo.
Sim, naquele domingo, 4 de agosto de 2024, e dias que se seguiram, o grupo profissional dos jornalistas reagiu de modo raro à morte de um dos seus. A par do “breve” ou do “canónico” obituário, leitores, ouvintes, telespectadores recebiam testemunhos de admiração e homenagem prestados por profissionais das múltiplas tendências e culturas que compõem as redacções de jornais, televisões e rádios. O mesmo, multiplicado por muitos, se ia passando nas redes sociais.
“Ourives da escrita”, “mestre dessa arte de narrar pequenas histórias de que é feito o grande jornalismo”, “coerente, de causas assumidas, mas sem cortar pontes com quem pensava de maneira diferente” e com um “discurso mesclado de ironia fina”. Foi assim que o classificou o camarada e amigo Pedro Correia, horas depois de ele nos deixar.

João Paulo Guerra entrou aos 20 anos no mundo radiofónico, via Rádio Renascença (RR). Passado um ano, já se apresentava ao jornalismo, no recém-criado Serviço de Noticiários do Rádio Clube Português (RCP). Aí permaneceu 10 anos, integrado numa equipa de luxo escolhida e dirigida por Luís Filipe Costa, figura mítica de um estilo noticioso que teria a sua consagração histórica na madrugada do dia 25 de abril de 1974. Como era frequente no tempo radiofónico pré-25 de abril, combinou a atividade de redactor-locutor de notícias com a de repórter, realizador e locutor de programas. E teve, fora disso, passagens por outros meios de comunicação social.
Exemplos abreviados:
Rádio
“PBX”, no RCP (1967-69); repórter, locutor e, posteriormente, realizador (1970-1972) do programa “Tempo ZIP”, inicialmente no FM do RCP e, mais tarde, na Rádio Renascença; editor e repórter na Emissora Nacional (pós-abril de 1974); chefe do Gabinete de Estudos e Planeamento da Direcção de Programas da Emissora Nacional (1974-75); correspondente, em Lisboa, da Rádio Nacional de Angola (1976-77); cofundador da Telefonia de Lisboa (1985-87); editor e repórter da TSF – Rádio Jornal (1990-96) e da Central FM (1996); colaborador da Antena 1 com: “Os Reis da Rádio” (2005-06), “Revista de Imprensa” (2006 2015) e “O Fio da Meada” (2015 - 2017). Foi ainda provedor do ouvinte de todas as estações da RTP – Rádio e Televisão de Portugal (2017-21).
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João Paulo Guerra. In Rogério Santos (26 de Abril de 2020). Fichas radiofónicas (2) – “Tempo Zip” e João Paulo Guerra. HISTÓRIA DA RÁDIO EM PORTUGAL. Recuperado em 25 de Maio de 2025 de https://doi.org/10.58079/t7li .
Ainda no âmbito radiofónico, como sua natural decorrência, foi monitor de cursos de formação profissional de rádio na Cooperativa de Rádio e Animação Cultural – CRAC, para a TSF e no Centro de Formação da RDP.
Imprensa escrita
(Antes do 25 de abril de 1974) – Colaborador do Diário de Lisboa, na equipa do suplemento “A Mosca” (1968-69), para e no qual inventou o que passou a chamar-se de “nacional cançonetismo”; A Capital, no suplemento “Cena 7” (1970) e, ainda, do República, da Memória do Elefante e do Musicalíssimo (1971); chefe de redação do semanário Notícias da Amadora (1972-74) e redator (nos primeiros meses de 1974) do semanário AE – Actividades Económicas, impedido de sair pela Censura.
(Pós 25 de abril de 1974) – Redator (1978-89) e chefe de redação (1989-90) de O Diário; correspondente da newsletter “SouthScan” (1985-89); colaborador do Público (1990), de O Jornal (1991-92) e de O Inimigo (1994). Como freelancer, fez, para a agência CNTV (1992), reportagens que vieram a ser publicadas, designadamente, no Público e no Expresso. Foi ainda editor do jornal O Jogo (abril - setembro de 1997) e do Diário Económico (1997-98), passando a seu colaborador entre 2006 a 2012.
Televisão
Guionista na SIC (1993-94); repórter da série “O Século XX Português” (SIC - 1997/99); guionista para a Endemol/SIC (2000): autor do guião de “Angola – 40 anos de Guerra”, classificado em primeiro lugar pelo ICAM, na modalidade de documentário (2002).
Obras
Polícias e Ladrões (Caminho, 1983); Operação África (Caminho, 1984), em coautoria com o jornalista Fernando Semedo (1954-1994); Os Flechas Atacam de Novo (Caminho, 1988); Memória das Guerras Coloniais (Afrontamento, 1994); Savimbi Vida e Morte (Bertrand, 3 edições em 2002); Diz que é uma espécie de democracia (Oficina do Livro, 1ª e 2ª edições em 2009); Descolonização Portuguesa – o Regresso das Caravelas (Dom Quixote, 1996 e Círculo de Leitores, 2000), com uma edição revista e aumentada, prefaciada por Ernesto Melo Antunes (Oficina do Livro, 2009); Romance de uma Conspiração (Oficina do Livro, 2010); e um livro de ficção, o romance Corações Irritáveis (Clube do Autor, 2016).
Foi ainda autor da série de reportagens “Viagens com Livros”, transmitidas pela TSF em 1995 e, posteriormente, editadas em CD pela Strauss (1996) e em livro pela Oficina do Livro (2009).
Prémios
Inevitáveis e significativas, as distinções, com destaque para as vindas da sua classe profissional.
Prémios de Rádio da Casa de Imprensa (coletivo), na equipa do programa “PBX” (1968); da Casa da Imprensa, como realizador do programa “Tempo ZIP” (1972); de Reportagem, do Secretariado para a Modernização Administrativa (publicada no Público, Outubro de 1990); Nacional de Reportagem, do Clube de Jornalistas do Porto; «Gazeta», do Clube de Jornalistas (2009); de Reportagem de Rádio, do Clube Português de Imprensa (1994), pelo conjunto de reportagens “O Regresso das Caravelas”, transmitidas pela TSF; “Procópio” de Jornalismo” (1996), pela série de reportagens “Viagens com Livros”, transmitidas pela TSF (1995); “Gazeta de Mérito” (2010), "pelo seu longo, diversificado e prestigioso percurso profissional de quase meio século de actividade na rádio, na imprensa e na televisão"; e, ainda, “Igrejas Caeiro”, da Sociedade Portuguesa de Autores (2014).
Por fim, três referências especiais:
1. A (aplaudidaíssima) adaptação teatral de Claraboia, de José Saramago, para A Barraca (2015), com encenação e dramaturgia de Maria do Céu Guerra, sua irmã, e cenografia de José Costa Reis.
2. Quando tal não era ainda muito frequente, criou um blogue, a que pôs o título, inspiradíssimo e atualíssimo, então e até hoje de “Jornalismo: diz que é uma espécie de democracia”. No caso, uma “herança” direta do livro com o mesmo título publicado na Oficina do Livro (Ver “Obras”), com uma seleção das crónicas publicadas no Diário Económico e que, assim, se prolongavam numa das novilínguas exigidas pela mudança de paradigma comunicacional.
3. Só que, a João Paulo Guerra, já se percebeu, não bastava, de facto, dizer uma vez por palavras. Quis dizê-lo de múltiplas formas e em diferentes plataformas, nisso demonstrando uma juventude eterna. Aceitou os mais diversos desafios vindos do campo jornalístico, alguns delicadíssimos. Como aquele de escrever sobre a mãe – Maria Carlota Álvares da Guerra, figura de destaque e de alguma controvérsia em meios intelectuais e jornalísticos de antes do 25 de abril, enquanto diretora que foi, durante 30 anos, da revista Crónica Feminina. O resultado foi um notável texto biográfico, de informação, compreensão e amor, publicado, em 2009, no livro Jornalistas Pais e Filhos, iniciativa da Casa da Imprensa.
Se é verdade que, com a morte de João Paulo Guerra “a comunicação em Portugal ficou um pouco mais pobre, o pluralismo político ficou um pouco mais amputado, a memória coletiva ficou um pouco mais diluída e descartável” (Pedro Correia, de novo), nada melhor do que contrariar tais efeitos através dos diferentes testemunhos de quem leu, ouviu, viu e /ou com ele conviveu de mais perto.
É esse o objectivo desta secção do NewsMuseum: fornecer ao visitante e, em particular, aos mais jovens, dados para um melhor e mais fundado conhecimento do percurso, postura e obra de cada selecionado.
Hoje, aqui, evocamos o jornalista, escritor e cidadão João Paulo Guerra. Outro (dos maiores), entre um nutrido punhado que, ao longo dos tempos, praticou e viveu “a mais bela profissão do mundo”, como o repórter e futuro Nobel da Literatura, Gabriel García Márquez, chamou um dia ao jornalismo.