Reinaldo Ferreira (Repórter X)

«O maior repórter da imprensa portuguesa», como foi classificado. Com drama, tragédia, graça e terror Reinaldo Ferreira adapta e adultera factos e acontecimentos reais para que as suas reportagens sejam as mais interessantes tendo, por isso, merecido os cognomes «livre atirador do jornalismo» ou «criador de factos».

O contador de estórias

«O menino já fez incêndios?». Na redação d’A Capital, Garibaldi Falcão, jornalista da velha guarda, interpelava um jovem aprendiz de 16 ou 17 anos.

Interpretando mal a pergunta, e julgando que o tomavam por pirómano, Reinaldo Ferreira retorquiu com um indignado «Não, senhor!». Foi a primeira reportagem do futuro Repórter X: um fogo posto na rua lisboeta da Estefânia.

Reinaldo Ferreira, que viria a ser conhecido como Repórter X, nasceu a 10 de agosto de 1897, em Lisboa. Foi um repórter, jornalista, dramaturgo e realizador de cinema português. A sua carreira jornalística começou aos doze anos de idade.

Anabela Natário, jornalista do Expresso escreveu a 3 de outubro de 2015:

«Conspirações, assassínios, roubos, fraudes, insólitos, intimidades e...audiências. Um homem dominou este universo como ninguém. Fosse ele vivo e teria descoberto a fraude eleitoral, antes que fosse tarde. Inventar muitos o fizeram, muitos o fazem, mas o Repórter X tinha uma técnica especial, até com a verdade nos faz pensar haver mentira».

Durante a sua adolescência era constante a leitura de folhetins policiais e de espionagem, por isso, entediava-se com a rotina dos «casos do dia». E como a realidade lhe negava assuntos palpitantes, só lhe restava inventar. Ainda hoje será difícil determinar todas as suas «reinaldices», para usar a expressão posta a correr pelos que lhe iam desmascarando as farsas.

Ele, porventura consciente de que essa pulsão para confundir factos e ficções era, afinal, o sinal distintivo do seu génio peculiar, retorquia com um neologismo da sua própria lavra: «reporterxizar».

O começo das «reinaldices»

Em 1917, com 19 anos, arrepia os lisboetas com o crime, tão tenebroso quanto inexistente, da Rua Saraiva de Carvalho, que metia malfeitores embuçados, um presumível cadáver e um vilão, apropriadamente designado como «o homem dos olhos tortos».

A história veio a lume n’O Século, em forma de cartas enviadas «por um desconhecido» que assinava como Gil Goes. A história atingiu tais proporções que o jornal achou prudente revelar o embuste.

Escassos meses após ter encerrado as aventuras de Gil Goes, Reinaldo Ferreira publica em A Manhã, em março de 1918, um «Inquérito à Mendicidade». Fez-se fotografar mal barbeado e esfarrapado, de mão estendida, e o público convenceu-se que o repórter fizera vida de mendigo. Mas, salvo o retrato, era tudo inventado, incluindo os 47 centavos que lhe teria rendido esta incursão na indigência.

 

 

Neste mesmo ano, volta a carga n’O Séculocom o suposto assassinato de uma estrangeira, perpetrado pelo respetivo marido numa pensão de Lisboa. Desta vez, auxiliado por Stuart de Carvalhais, vai ao ponto de pôr um quarto da dita pensão de pantanas e de espalhar sangue de galinha pelo aposento.

Para encerrar o ano de 1918, «recolhe» as últimas palavras do presidente Sidónio Pais, assassinado na Estação do Rossio: «Morro eu, mas salva-se a Pátria». A verdade é que não presenciou o sucedido e, ao que parece, o estadista tombou sem ter tido tempo de dizer seja o que for.

Reinaldo «reporterxiza» no estrangeiro

Em 1920, Reinaldo Ferreira vai para Paris, ao serviço da filial francesa da Agência Americana (agência de notícias), mas por pouco tempo. No fim de 1921, já casado e com dois filhos, muda-se para Barcelona.

Com a subida ao poder de Primo de Rivera, em Espanha, o jornalista regressa a Portugal, mas não sem antes enviar uma crónica à imprensa de Lisboa, atacando o ditador.

Assina o artigo com o seu próprio nome, mas um amigo faz-lhe ver que poderia sofrer represálias e, prudente, Reinaldo escreve por cima «Repórter». Todavia, por um desses acasos do destino, o tipógrafo que recebe a peça vê um «X» no que não era mais do que o rabisco final da mal escondida assinatura. Nascia, assim, o Repórter X.

 

 

Já empregado na revista ABC, é enviado à Rússia, em 1925, para acompanhar a luta desencadeada após a morte de Lenine. De Paris, onde terá experimentado pela primeira vez morfina, Reinaldo informa que está a ser difícil conseguir um visto, mas vai mandando trabalho, designadamente uma entrevista forjada a Conan Doyle, escritor das histórias de Sherlock Holmes.

Finalmente começam a chegar as crónicas de Moscovo, onde o jornalista passa a vida a tropeçar em portugueses, desde o porteiro do Kremlin ao homem que embalsamou Lenine. Acredita-se que o repórter nunca pôs os pés na Rússia e que se limitou a ficar em Paris, aguardando os artigos de Henri Béraud, que para lá fora destacado pelo Le Journal.

Em 1926 está de novo em Portugal, fixando-se no Porto e escrevendo simultaneamente para a revista ABC e para O Primeiro de Janeiro. É em março desse ano que se dá em Lisboa o célebre assassínio da atriz Maria Alves, estrangulada num táxi e lançada morta para a sarjeta. Baseando-se em anteriores crimes congéneres e na intriga de um romance espanhol, Reinaldo aventa nos jornais que o culpado é o ex-empresário da vítima, Augusto Gomes. Desta vez acerta.

O Repórter X na morte de Maria Alves

Perto da serração da fábrica Portugal, o corpo está deitado de barriga para baixo. Um dos pés está descalço. Raimundo José dos Santos, eletricista no Salão Foz, regressa a casa pelas 2h20 da madrugada e, na Rua Francisco Foreiro, paralela à Almirante Reis, encontra primeiro o sapato e depois, avista o corpo.

Há qualquer coisa na posição dos braços, grotescamente dobrados, e nas roupas em desalinho, que forçam «este homem alto e de bom porte» a aproximar-se. Olha em volta. O movimento da rua cessou. O coração gela-se-lhe quando vê uma poça de sangue escuro que empapa o cabelo cortado à garçonne. Sem o identificar, Raimundo encontrou o corpo sem vida de Maria Alves, atriz do Parque Mayer. E agora?

Precipita-se rua fora. Não quer que o julguem culpado, mas não pode deixar ali a vítima. Leva consigo o sapato sem saber bem porquê. Encontra por fim o agente 2035 da esquadra de Arroios. É ele que dá o alerta.

A notícia corre rápido. Em esforço sobre-humano, os jornais matutinos inserem nas edições de 31 de março notícias curtas, com os pormenores disponíveis. Só na manhã seguinte se descobre a identidade da vítima.

Reinaldo, o célebre Repórter X, funciona de maneira diferente. Conjetura, deduz e, incrivelmente, pelo menos neste caso acerta na mouche, logo na sua crónica inicial, publicada n’ O Primeiro de Janeirode 1 de abril.

Enquanto a polícia de Lisboa lança a tese de um assalto de ocasião e de um estrangulamento, Reinaldo interpreta a sua observação em primeira mão. Pesa o que conhece de Maria Alves, a menina que fez furor no Águia de Ouro(café e mais tarde cinema do Porto).

Revela os factos aos leitores do diário portuense. Na noite do crime, Maria Alves jantou com o seu empresário e amante, Augusto Gomes, no Parque Mayer. Zangaram-se por causa de uma dívida de um colega de Gomes. Este, para apaziguar a fera em que a atriz se transformava quando discutiam honorários, saldou a dívida do amigo. Despediu-se dela à entrada do carro elétrico, o último da noite, que seguia para Arroios. Não a voltou a ver.

Reinaldo terminava a crónica teatralmente: «É tarde. Não tive tempo de apurar o resto. Mas existe uma suspeita no meu espírito. É tão grave… tão grave que não a revelo. Peço só uma coisa: leiam El Mistério del Kursall, de José Francés. É o romance dum crime – dum crime em que a vítima era uma estrela. E lendo esse livro, e vendo quem é o criminoso, saberão sobre quem caem as minhas suspeitas…».

Com duas semanas de antecedência, Reinaldo deixava pistas sobre a identidade do culpado. Em El Mistério del Kursall, é o amante e empresário da estrela quem a mata. No drama de Maria Alves, essa seria também a sua sina.

 

O duelo entre os matutinos de Lisboa tinha começado. O Século teve o mérito de não aceitar a explicação simplista do chefe da polícia. No dia 1 de abril propõe, com uma sugestiva fotografia captada no local do crime, que a «infeliz não foi morta no sítio onde apareceu o cadáver».

Os depoimentos recolhidos pelo jornal permitem-lhe avançar que a posição invulgar do corpo de Maria Alves e o afastamento do sapato e do chapéu resultaram não de um ataque no local, mas de um empurrão a partir da portinhola de um automóvel.

O Diário de Notícias ataca os «jornais que não têm o direito de menoscabar os préstimos da polícia» e conclui, no dia 5 de abril, a «inutilização da hipótese de Maria ter sido sufocada ou estrangulada». Por sua vez, o Diário de Lisboa queixa-se do «feitio de bisbilhotice ingénita» de repórteres e jornais.

Reinaldo Ferreira envia para a revista ABC, semanário publicado às 5.ª feiras, uma fotografia noturna de um qualquer homem fechando rapidamente a portinhola de um táxi, abandonando um vulto na estrada.

Augusto Gomes confessa…O mote foi dado pelo Repórter X

«Este homem sabe tudo! Este homem esteve a espreitar-me!», terão sido as palavras de Augusto Gomes após ter lido o que Reinaldo Ferreira escrevera na revista ABC.

Reinaldo passou um mês a conjeturar sobre a culpa de Augusto Gomes e imputando-lhe responsabilidades na morte da atriz Maria Alves. Considerado suspeito, Augusto Gomes é detido na cadeia do Limoeiro.

No início de maio de 1926, Augusto escreveu-lhe. Pediu-lhe que o fosse ver ao Limoeiro. «Até aos condenados à morte lhe é dada assistência». Durante cinco horas, Reinaldo entrevistou Augusto. Notou-lhe as «mãos sapudas, com os polegares curtos, largos na cabeça – mãos de estrangulador».

Anotou-lhe a confissão: «Não me arrependo de a ter morto. Ela enganou-me. Eu tinha o direito de a matar… Cem vidas ela tivesse, cem vidas eu lhe tirava. Só me arrependo de a ter abandonado na via pública».

 

No fim, o palco é de Reinaldo Ferreira, o Repórter X

Em reflexão publicada n’ O Primeiro de Janeiro de 15 de abril de 1926, Reinaldo escreveu uma crónica naturalmente orgulhosa pela sua «descoberta», mas crítica da facilidade com que polícias e jornalistas em Lisboa acreditaram na tese extravagante dos «gravateiros desconhecidos».

«A policia riu-se de mim. Colegas meus acusaram-me de caluniador. Eles conheciam Augusto Gomes. Eu, não».

Estávamos em 1935 quando Reinaldo Ferreira morreu precocemente aos 38 anos, após um período de dependência de morfina.

Para a posteridade ficaram as suas estórias que fizeram história. Também no cinema, Reinaldo construiu paralelamente uma carreira. Repórter X Film, era o nome da empresa que fundou, graças ao financiamento do comerciante Joaquim Alves Barbosa. Produziu filmes e documentários dos quais se destacam os filmes Táxi Nº 9297, inspirado na morte de Maria Alves, e Rita ou Rito?.