Genocídio no Ruanda

Genocídio com embargo

Em 100 dias, estima-se que mais de 800.000 pessoas foram mortas no Ruanda. E o repórter não estava lá. Foi um massacre para o qual a cobertura mediática chegou tarde demais.

“By late afternoon, they looked like water lilies cloaking the river's surface. Only when the light reflected off the water did you catch a truer glimpse of them: bodies by the dozen, bloated and obscene, floating together downstream”.

«Ao final da tarde, pareciam lírios de água a cobrir a superfície do rio. Apenas quando a luz era refletida na água se via de relance a imagem real: corpos às dezenas, inchados e obscenos, a flutuar com a corrente».

Tom Giles, BBC, 7 de abril de 1994

 

A onda de violência que se abateu sobre o Ruanda remonta à conflituosidade étnica entre Hutus e Tutsis.

As tensões entre as duas já advinham do período colonial do Ruanda.

Após a Primeira Guerra Mundial, a Bélgica assumiu a liderança das colónias.

Os belgas consolidavam a distinção entre as duas etnias, emitindo bilhetes de identidade que indicavam a etnia dos cidadãos.

Além disso, a minoria Tutsi era favorecida através de cargos de liderança, em detrimento da maioria Hutu.

Em 1959, os Hutus rebelaram-se contra os Tutsis, obrigando milhares de Tutsis a fugirem para o Uganda. A partir de 1961, os Hutus vitoriosos expulsavam o monarca Tutsi que se encontrava no poder e declaravam o Ruanda uma república.

A independência da agora república era concedida pela Bélgica em 1962.

Mas, após a independência, a violência entre as duas etnias iria agravar-se.

Rebenta a Guerra Civil

Em 1973, o General Juvenal Habyarimana, um Hutu moderado, sobe ao poder e ordena a suspensão da violência.

Durante um longo período de mais de 15 anos, o Ruanda viveu numa relativa paz, com a maioria dos Tutsis refugiados no Uganda.

No entanto, a guerra civil que eclodiu no Uganda fez com que os Tutsi exilados no país se juntassem às forças rebeldes ugandesas. Em 1987, os Tutsis formam a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) e, em 1990, invadem o leste do Ruanda.

Este era o ponto de viragem que Habyarimana precisava para unificar os Hutus contra o inimigo comum: os Tutsis.

Na capital do país, Kigali, a motivação fornecida pelo presidente financiou a criação do jornal Kangura, que passou a difundir mensagens antitutsi.

Os franceses e os belgas não se coibiram de apoiar os Hutus contra o FPR, fornecendo-lhes armamento. E os massacres e as perseguições continuaram, intensificando-se em 1992.

Em agosto de 1993, a esperança voltou. O presidente Habyarimana assinava, em Arusha, na Tanzânia, um acordo de paz com o FPR, que o incluía num governo de transição para o Ruanda.

Os Hutus extremistas, todavia, não iriam ficar satisfeitos com o Acordo de Arusha. O pior estava ainda para acontecer.

Escalada de violência

A 6 de abril de 1994, um avião que transportava o presidente Habyarimana e o presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, foi abatido, não deixando quaisquer sobreviventes.

As acusações variavam entre os extremistas Hutus e o FPR.

Apenas uma hora depois do ataque, as milícias Hutus bloqueavam as estradas e as ruas, como se fosse tudo parte de um plano previamente delineado.

A RTLM (Radio Télévision des Milles Colines), também difusora de propaganda antitutsi, ordenava publicava o início da matança dos Tutsis.

A porta para o genocídio em massa dos Tutsis e dos Hutus moderados tinha sido aberta.

A milícia Hutu denominada Interahamwe ficou encarregue de executar sumariamente os Tutsis, e armas e listas de alvos a abater eram distribuídas pelos locais.

Vizinhos matavam vizinhos, professores matavam alunos, e até padres e freiras foram acusados de homicídio.

O caos e o horror tinham-se instalado e não havia retorno.

Paralelamente ao genocídio de milhares de Tutsis, uma guerra civil entre o FPR e os Hutus eclodiu no território.

A 12 de abril de 1994, apenas uma semana após o início da chacina, havia apenas 21 jornalistas estrangeiros em território ruandês.

Um deles era Rui Araújo, enviado especial da RTP.

«Tiros de morteiro e rajadas de armas automáticas, os combates em Kigali continuam. As tropas ruandesas entraram esta manhã no aeroporto, estão aqui atrás de mim, os rebeldes do FPR cercam a cidade e cercam-nos a nós».

Durante esse mês de abril, a história de um dos piores crimes do século XX não estava a ter destaque na cobertura televisiva. Tal situação era ainda mais flagrante devido à era globalizada dos satélites em que nos encontrávamos.

Além da dificuldade de acesso ao Ruanda, a maioria dos correspondentes estava na África do Sul, a cobrir a eleição do primeiro presidente negro.

A 11 de abril, apenas quatro dias depois do início do combate, o The New York Times escrevia que a violência tinha “appeared to slacken”  («parecia abrandar»), com o Le Monde a escrever, no dia seguinte, que o combate tinha “diminished in intensity” («reduzido em intensidade»). 

Também as estimativas quanto ao número de vítimas avançadas pelas publicações eram erróneas.

A 16 de abril, mais de uma semana depois do início do conflito, o The Guardian apenas estimava um total de 20 mil mortes.

“The graves are not yet full” [«As sepulturas ainda não estão cheias»].

Esta era a mensagem difundida pelo emissor da RTLM, que incitava o povo Hutu a matar a minoria Tutsi.

Mas Rui Araújo, que se manteve no Ruanda no mês seguinte, assistia aos horrores da carnificina, que prosseguiu com todo a força e vigor.

«As pernas de um homem foram comidas pelos cães depois de ter sido morto (…) Uma jovem ficou com a cabeça feita em bocados por uma catana», escreveu Rui Araújo para o Diário de Notícias, a 28 de maio de 1994.

“This is the beginning of the final days. This is the apocalypse”, [“Este é o início dos dias finais. Isto é o apocalipse”], lia-se na capa da Time, a 1 de agosto de 1994.

A 27 de junho, a BBC transmitiu o documentário Journey into Darkness, que ilustrava a verdadeira dimensão do horror, sem censura.

Era difícil transmitir a mensagem de genocídio, pois as imagens eram escassas e muitas vezes censuradas, devido ao seu teor altamente gráfico.

Além disso, a ONU e os Estados Unidos recusavam chamar ao conflito um genocídio, para evitarem os termos da Convenção de Genebra e serem obrigados a intervir.

Os Estados Unidos, em especial, recusavam a interferência no país, devido ao embaraço da recente «Operação Restaurar a Esperança» na Somália.

Apesar das forças belgas e das Nações Unidas no campo de batalha, a organização não mandava a ordem para parar com a matança.

Aos olhos de muitos, França teve o comportamento mais vergonhoso.

Com o objetivo de manter a sua zona de influência francófona em África, os franceses apoiaram o governo Hutu durante todo o genocídio, unindo-se contra a FPR, cujos efetivos falavam inglês.

A vergonha era ainda maior, uma vez que não poderiam alegar desconhecimento de causa. França foi o primeiro país a divulgar as primeiras notícias das tensões étnicas e da matança no Ruanda.

 

Quando em julho de 1994, a FPR começou a ganhar território e ocupou a capital ruandesa, os Hutus migraram em massa para o Zaire (atualmente República Democrática do Congo).

A guerra acabara.

Muitos organizadores e executores do genocídio misturaram-se entre os refugiados que recebiam ajuda humanitária no Zaire, tornando a sua identificação muito difícil.

Contudo, estes campos de refugiados no Zaire tornar-se-iam um foco mediático, mesmo depois de toda a carnificina ter passado.

O massacre, que outrora tinha sido ignorado, ganhava lugar na sétima arte.

Hotel Ruanda, o filme de Terry George, levou ao grande ecrã a história de Paul Rusesabagina, o gerente do Hôtel des Milles Colines, que foi responsável pela salvação de mais de 1.000 Tutsis e Hutus.

 

O filme recebeu três nomeações aos Óscares (melhor ator, melhor atriz secindária e melhor argumento original) e ganhou o «Prémio do Público» no festival de Toronto, no Canadá.

Em 100 dias de conflito, é estimada a morte de mais de 800.000 pessoas.

Quando a ONU finalmente reconheceu o estatuto de genocídio e criou tribunais para julgar os seus autores, já era tarde de mais. Era difícil identificar os responsáveis e o número esmagador de vítimas era incontornável.

O genocídio em Ruanda tornar-se-ia uma das grandes atrocidades do século XX, e um dos grandes falhanços dos media.