Desintegração da Jugoslávia

Room With a View

A violência e o horror deste conflito chega ao mundo a partir do quartel-general dos Media algures numa janela de hotel em Sarajevo.

A Praça da Ljubljana

No verão de 1991, o presidente da Eslovénia declarava a independência na praça central de Ljubljana. Carlos Santos Pereira, a escrever para o Público, era o único repórter português no local.

 

 

Mas a Sérvia não aceita a independência da Eslovénia, e o conflito acaba por estalar. Os EUA afirmam que o conflito é problema europeu. A CEE intervém e a 28 de junho envia uma troika de ministros dos negócios estrangeiros a Belgrado e Zagreb. O Governo federal decreta um cessar-fogo que é violado no mesmo dia. A 29 de junho, a troika da CEE (formada pelos chefes de diplomacia da Holanda, Itália e Luxemburgo) forçam os países a assinar novo acordo de cessar-fogo. A CEE queria a suspensão das independências da Croácia e da Eslovénia, para além da retirada das tropas sérvias.

 

 

Os eslovenos, que em nada beneficiavam com esse acordo e que sentiam que a opinião pública europeia não virava a seu favor, foram os primeiros a reatar os combates. Mas algo estranho se passava. Os jornalistas portugueses em Ljubljana rapidamente começaram a perceber que a guerra era encenada. Havia tiros ocasionalmente e várias barricadas, mas não se assistiam a combates.

 

 

Mais tarde, a CEE consegue que os países cheguem a um acordo na ilha de Brioni, onde eslovenos e croatas aceitam moratória de 3 meses sobre a sua declaração de independência a troco do fim das hostilidades. O Acordo de Brioni não representou o triunfo da diplomacia europeia, mas antes o começo da guerra.

 

O deflagrar do conflito

A julho de 1991, a guerra entre a Sérvia e a Croácia rebenta. O exército federal já não pretendia defender as fronteiras da Jugoslávia, mas antes a defesa das comunidades sérvias espalhadas pela Federação.  Os sérvios da Krajina não queriam independência como a Croácia, e os dois lados entram em rota de colisão.

 

 

A 26 de agosto dá-se início à limpeza étnica na Croácia, por parte dos sérvios. José Pedro Castanheira, do Expresso, assistiu aos croatas a cercar os quartéis do exército federal jugoslavo em Zagreb, assim como a preparação da cidade para o exército. «A cidade vive permanentemente em sobressalto. O ambiente era de verdadeiro pânico, devido à possibilidade de um ataque de tanques» 

 

A 17 de setembro, começava o primeiro bombardeamento de Zagreb por parte da aviação federal.

«Vindo do breu, não se sabe de onde nem para onde, um Mig 21 sobrevoa a cidade a baixa altitude. Em pleno centro, ultrapassa a barreira do som, provocando o tradicional estampido que a surpresa, o escuro, o silêncio e o medo reinantes multiplicam por mil. A defesa antiaérea riposta de diversas direções» – José Pedro Castanheira, Expresso.

 

A guerra pela independência da Croácia iria durar quatro longos anos. Maria João Carvalho, uma repórter freelancer, faria algumas crónicas para a RTP: «A Guarda patrulha a cidade e procura detetar atiradores especiais cetnik nas janelas e terraços dos prédios do centro. Todos os cidadãos foram alertados para estarem atentos a movimentos suspeitos e contactarem a polícia. Sabe-se que, até segunda-feira, Zagreb será atacada. Com os quartéis controlados pelo exército federal e os batalhões do sul a forçarem caminho até à cidade, os croatas estão tensos e suspeitam de tudo e de todos».

 

O conflito agudiza-se

Em novembro, com o agravar da situação, Artur Albarran e Godofredo Guedes, enviados especiais da RTP, chegaram a Zagreb.

«Ambos os lados se acusam de comportamentos inumanos, massacres e outras violações da Convenção de Genebra […] O pior é que ambos têm razão, porque a situação aqui, na Jugoslávia [ouve-se explosão] está fora de qualquer tipo… certamente fora de qualquer ética militar».

 

Em 1992, Carlos Santos Pereira, agora repórter da RTP, deslocava-se para a Bósnia-Herzegovina para cobrir os dois dias de referendo que decidiam a independência ou a permanência na Federação Jugoslava.

«Uma afluência hesitante do eleitorado às urnas e o número escasso dos incidentes registado, eis o balanço das primeiras horas deste referendo na Bósnia-Herzegovina». – RTP, 29 de fevereiro 

«À medida que o astro-rei se escondia há horas atrás das montanhas, um longo suspiro percorria a Bósnia-Herzegovina (…) A prova terrível deste referendo sobre a independência parece para já ultrapassada sem a explosão de violência étnica que muitos receavam». – RTP, 1 de março 

No dia a seguir o repórter conta-nos que as guerrilhas iriam eclodir: «Ao cair da noite, Sarajevo é uma cidade fantasma. Vive-se um silêncio tenso e pesado, constantemente interrompido pelos disparos e rajadas das metralhadoras que se ouvem de vários pontos da cidade, o medo instalou-se em Sarajevo e toda a gente espera o pior para esta noite». Santos Pereira, RTP, 2 de março 

O referendo, que tinha sido boicotado pelos sérvios, confirmou a vontade dos muçulmanos e dos croatas de se afastarem da Jugoslávia. Mas os sérvios declaravam guerra em abril de 1992.

O «quartel-general» dos media

Em Sarajevo, o hotel Holiday Inn tornou-se o «quartel-general» dos media. «Naquele local não ias para a guerra, a guerra vinha ter contigo», afirma Martin Bell, correspondente da BBC.

 

 

A 2 de maio de 1992, o presidente da Bósnia, Alija Izetbegovic, voltava de Portugal após uma sessão falhada de negociações com a CEE.

Em pleno telejornal bósnio, o apresentador entrevistava, em direto, o presidente. «Penso que fui raptado», confessava Alija Izetbegovic ao apresentador. Seguiram-se momentos de negociações entre o pivô e o general do Exército jugoslavo, em direto na televisão.

Nos anos seguintes, vários jornalistas portugueses relatavam os horrores da guerra na Bósnia-Herzegovina.

«O crepitar das metralhadoras, o troar dos canhões, o medo e a incerteza constantes marcam o ritmo das horas em Sarajevo» – Carlos Santos Pereira, RTP, 13 de julho de 1992.

«Dentro da cidade [Mostar], o cheiro a pólvora e a queimado é intenso. Rebentamentos e disparos de armas automáticas ouviam-se, não muito longe» - Henrique Vasconcelos, RTP, 16 de junho de 1992.

«Casas completamente devastadas, famílias inteiras sem um teto para as abrigar, cadáveres amontoados» – Ana Leal, Rádio Comercial, agosto de 1992.

“Since events in what used to be Yugoslavia seem to have no impact whatsoever on the safety of our homes and families […] we have remained remarkably untouched, unmoved, by what is, indisputably, a gigantic human tragedy” [Visto que os eventos na antiga Jugoslávia parecem não ter qualquer impacto na segurança das nossas casas e famílias […] continuamos impávidos e serenos relativamente àquilo que é, sem dúvida, uma imensa tragédia humana], desafiava o repórter da ABC, Ted Koppel.

A situação tornava-se difícil de ignorar e Bill Clinton deparava-se com perguntas desconfortáveis.

 

 

Penny Marshall, da ITN, e Ed Vulliamy, do The Observer, mostraram ao mundo os campos de Omarska and Trnopolje. 

 

 

Rapidamente os jornalistas presentes em Sarajevo tornaram-se alvos no meio da guerra entre bósnios e sérvios.

«O carro da televisão portuguesa aqui em Sarajevo foi alvo de um ataque. Escapámos por pouco» – Pinto Amaral, Telejornal, RTP, 1 de setembro de 1992.

«O Holiday Inn, onde está a maior parte dos jornalistas, foi bombardeado toda a noite e manhã de hoje. A razão disso é por se esconderem ali snipers, e, por isso, apesar do acordo das três forças em não o bombardearem, ele é atingido diariamente» – Maria João Carvalho, Rádio Renascença, 28 de agosto de 1992.

«Ao fim da tarde, os snipers aguardam os jornalistas à saída do ‘escritório’ da BBC, com tiros e granadas» – Maria João Carvalho, Diário de Notícias, 30 de agosto de 1992.

 

E as imagens da guerra continuavam a espalhar-se pelo mundo.

 

A 5 de fevereiro de 1994, o mercado de Sarajevo era bombardeado pelos sérvios, em plena praça povoada de gente. Em pleno efeito CNN, as imagens chocantes do ataque divulgadas pelos media iriam despoletar a ação da NATO, apoiada pelo governo dos EUA.

 

 

A 9 de março de 1995, o The New York Times publicava um artigo que culpava os sérvios por 90% dos crimes de guerra. Uma tendência que os media parecem ter refletido. A cobertura da guerra na Bósnia foi alvo de críticas por ser parcial, confusa e pouco clara na explicação da origem do conflito.

 

 

 

Em 1995, a Bósnia-Herzegovina era bombardeada pela NATO. «ONU ameaça continuar ações militares se sérvios bósnios não retirarem das “zonas de segurança”», escrevia o Diário de Notíciasa 31 de agosto de 1995.

 

 

A 1 de novembro, os americanos conseguiram juntar os presidentes da Sérvia, Croácia e Bósnia na mesa das negociações. O Acordo de Dayton era assinado e marcava o fim da guerra na Bósnia-Herzegovina. As tensões nos Balcãs eram atenuadas, mas não ficariam resolvidas…

 

 

Em 2007, vários artistas bósnios ergueram uma estátua de uma lata de comida em Sarajevo, num gesto de homenagem irónico à ajuda humanitária fornecida pelos europeus durante a guerra.

The Ikar canned beef is remembered by the people of Sarajevo with disgust. Cats and dogs did not want to eat it and people had to.” [A lata de carne é lembrada pelo povo de Sarajevo com repugnância. Os gatos e os cães não a queriam comer, e as pessoas tinham de fazê-lo], afirmou Dunja Blazevic, do Centro de Arte Contemporânea de Sarajevo. A Europa falhou aqui, e continuou a falhar no Kosovo.

A crise do Kosovo

A tensão no Kosovo já datava de muito antes, quando o país começou a ser povoado por uma maioria albanesa, em detrimento dos sérvios, que consideravam a região o berço da Sérvia. Em setembro de 1991, os albaneses organizaram um referendo clandestino aprovando a criação da República do Kosovo. Não haveria retorno. O UÇK, ou Exército de Libertação do Kosovo, iria insurgir-se contra as autoridades sérvias no território, através de vários atentados entre 1996 e 1998.

 

Pedro Cruz, enviado da TSF, chegou a Priština, a capital do Kosovo, em junho de 1998. O repórter verificava:

«Os sérvios estão cada vez a perder mais o controlo da situação, eles controlam apenas as estradas principais, tudo quanto vira para estradas secundárias, então quem domina tudo são os rebeldes albaneses, que patrulham, controlam, têm check-points em todas as estradas».

«É possível ver já a circulação de veículos militares fortemente armados e com muitos soldados dentro, ou seja, o exército jugoslavo começa agora a entrar neste jogo que, até agora, tinha sido só entre a polícia e o UÇK».

As imagens de aldeias inteiras a serem incendiadas, de milhares de civis a viverem nas florestas percorreram os media de todo o mundo. A opinião internacional crescia em direção da intervenção, para evitar que o Kosovo se tornasse numa nova Bósnia.

 

 

O massacre de Gornje Obrinje foi um dos pontos críticos do conflito que gerou atenção mediática. A 12 de outubro, a NATO interveio, lançando um ultimato a Belgrado para que as tropas sérvias se retirassem do Kosovo.

 

 

No entanto, o acordo da NATO não contemplava a independência do Kosovo, nem tão-pouco a ação do UÇK. Enquanto os sérvios se retiravam do Kosovo, o UÇK retaliou e provocou as tropas de modo a que estas cometessem atrocidades que levassem a uma intervenção militar da NATO. Os sérvios caíram na armadilha e o conflito reacendeu-se com nova intensidade.

Após vários meses de negociações, a Sérvia não acatava as condições impostas pela NATO. A 24 de março de 1999, a NATO deu início à «Operação Força Aliada», bombardeando os principais pontos militares sérvios. A primeira retaliação sérvia tomou como alvo os jornalistas ocidentais. Todos os repórteres presentes no Kosovo foram expulsos do território. Em 1999, novos ataques da NATO, desta vez em Belgrado.

 

 

Os bombardeamentos da NATO prolongar-se-iam até junho de 1999. Vários jornalistas portugueses faziam a cobertura do conflito a partir de Belgrado.

José Rodrigues dos Santos relatava o primeiro bombardeamento à capital sérvia para a RTP: «Senti a noite iluminar-se com uma luz muito forte. Olhei pela janela. Vi ainda os restos de um clarão branco alanrajado a diminuir, e, depois, um segundo depois, senti uma detonação de tal modo forte, (…) que tive que me encolher com medo de que os vidros se partissem».

«A NATO prometeu uma vaga de bombardeamentos sem precedentes, e cumpriu. As explosões das bombas e mísseis da NATO, e o frenético crepitar da antiaérea sérvia, bem o testemunharam esta noite, em Belgrado». – Santos Pereira, Telejornal, RTP, 7 de abril de 1999.

«Uma série de violentas explosões acordou-me a mim e deve ter acordado toda a gente aqui em Belgrado. (…) Esta foi uma das noites mais violentas aqui em Belgrado, e eu já levo aqui um mês de guerra». – Aurélio Faria, SIC, 22 de abril de 1999.

«Começou o trânsito ensurdecedor de aviões que não se veem, de balas tracejantes e dos barulhos abafados das antiaéreas» – Pedro Rosa Mendes, Público, 21 de maio de 1999.

Durante a maior parte da guerra, as autoridades sérvias negaram acesso ao Kosovo à maioria dos jornalistas. Quando era permitido fazer a cobertura, esta tinha de decorrer sob supervisão oficial.

A 9 de junho de 1999, era assinado um acordo de paz entre a Jugoslávia e a NATO. Restavam três repórteres portugueses em Belgrado.«A capital da Jugoslávia anima-se de alívio, mas há uma raiva no ar», escreveu Pedro Rosa Mendes para o Público.

Grande parte da informação disponível para os jornalistas ocidentais  advinha da NATO, um dos principais protagonistas. Desta forma, levantavam-se as dúvidas sobre o ângulo abordado pelos media. Ainda antes do final do conflito, The Indepedentquestionava o papel da NATO na cobertura mediática.

 

 

Em 2001, Slobodan Miloševic, o homem que governou a Jugoslávia durante a guerra nos Balcãs, foi acusado de crimes contra a Humanidade pelo Tribunal Penal Internacional da ONU. A Jugoslávia foi dissolvida em março de 2002.