Marcas de Ferro
Os símbolos da identidade nacional criados, na década de 1930, à medida da Ditadura, ficam a cargo de António Ferro. O maior propagandista português desdobra-se em iniciativas de incentivo às artes e à promoção do regime. Deixa marca na Marca Portugal e muitas das suas criações sobrevivem ao fim do salazarismo
A ideia do fado enquanto música nacional, do galo de Barcelos como símbolo, do turismo enquanto produto, da cultural popular, da reconstrução dos castelos, do teatro e do cinema de rua ou a ideia do acesso aos livros nas aldeias de um país rural. Tudo isto tem a assinatura de António Ferro. Décadas antes de se falar sobre indústrias criativas, conteúdos turísticos, cultura pop ou da marca Portugal. Décadas antes destas definições terem sido sequer inventadas.
Jornalista, escritor, político, repórter, mecenas, propagandista, criativo. Homem das letras e da cultura. António Ferro reinterpretou e reinventou pequenas tradições culturais populares criando novos ícones e símbolos para o país. Ao mesmo tempo aproveitou o seu estatuto para promover uma nova geração de criadores que transformaram as artes em Portugal. Da música à escultura, da arquitetura à pintura, passando pelo cinema. António Ferro foi um contador de histórias e o grande mecenas de um período muito fértil de criação artística.
O seu legado sobreviveu ao regime, à passagem do século e marca ainda hoje a ideia que os portugueses têm de Portugal e a forma como os outros olham para o nosso país.
António Ferro nasceu em 1895. Cresceu no desassossegado período da primeira república. Tempos politicamente e socialmente conturbados onde se distinguiria como autor modernista, discípulo de Mário Sá-Carneiro.
Ficaria ligado ao movimento que incluía nomes como Fernando Pessoa, Almada Negreiros ou Santa-Rita.
Segue este movimento também nas ideias políticas evoluindo na crítica ao sobressalto e à instabilidade da Primeira República. Confesso admirador de Sidónio Paes segue para Angola como oficial miliciano acabando por tornar-se secretário-geral do Governo Provincial.
No regresso a Lisboa apaixona-se pelo jornalismo e afirma-se nas redações de O Jornal, Diário de Lisboa, o Século e da revista Ilustração Portuguesa. Continua a publicar prosa e verso confirmando a sua capacidade enquanto criador artístico.
É, no entanto, a vivência de repórter internacional do Diário de Notícias que lhe dá mundo e a oportunidade de entrevistar e conhecer personalidades marcantes e controversas do seu tempo: Adolf Hitler, Benito Mussolini, Primo de Rivera. Ferro deixa-se fascinar pelos regimes autoritários da época. Conduz uma série de entrevistas ao então Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar e aceita o convite para dirigir o Secretariado Nacional de Propaganda. Dá vida ao SNI, a uma central de comunicação que tem como objetivo de promover e consolidar o regime criado pela nova Constituição. Dá vida a uma ideia do próprio António Ferro.
Estávamos em 1933. Nascia o Estado Novo. Nascia a ditadura de Salazar.
Nos dezasseis anos seguintes António Ferro cria, reinventa e reinterpreta histórias e tradições portuguesas. A este movimento chama-lhe «Política de Espírito». Mais do que propaganda aos feitos do regime, a «Política de Espírito» tratava da total e completa reconstrução da identidade nacional.
«A Política do Espírito [explicou] não é apenas necessária, se bem que indispensável em tal aspeto, ao prestígio exterior da nação: é também necessária ao seu prestígio interior, à sua razão de existir».
Aliou esta recriação da identidade portuguesa com um fulgor único de fomento cultural apoiando, promovendo e projetando a criação e produção artísticas nas suas diferentes disciplinas. Num misto de contador de histórias com encantador de histórias.
Estes dois movimentos, aparentemente contraditórios, são a marca distinta do seu legado. O António Ferro dos ranchos folclóricos, das saias nazarenas e das pequenas tradições populares é o mesmo mecenas do bailado, da Arte Moderna e dos movimentos artísticos de vanguarda.
Como ninguém caldeou história, com futuro e até com destino. Criou palcos para a liberdade artística e criadora de escultores, pintores e cineastas. Foi assim como comissário das exposições internacionais de Paris e Nova Iorque, mas especialmente na exposição do mundo português, em Belém, em 1940.
Ao mesmo tempo eleva-se o anónimo galo de Barcelos à categoria de símbolo nacional. A desconhecida Monsanto ao estatuto de Aldeia mais portuguesa de Portugal. Promove-se a ourivesaria do Viana, os trajes e os ranchos folclóricos.
Criam-se as Pousadas de Portugal para afirmar o país como destino turístico. Reabilitam-se os castelos históricos como forma de afirmação da sua identidade. Cria-se a cinemateca nacional para promover a sétima arte. Criam-se bibliotecas itinerantes, cinemas de rua e o teatro do povo. Cria-se a Companhia de Bailado Verde Gaio. Muitos portugueses têm pela primeira vez contacto com livros e manifestações culturais e artísticas.
Consagram-se criadores como Almada Negreiros, Leitão de barros e Raul Lino e nascem outros nomes que o país também não esqueceria. A voz da jovem Amália Rodrigues torna-se numa embaixada itinerante da «alma da nação». Manoel de Oliveira inicia a sua carreira como realizador. Até o mal-amado Fernando Pessoa tem a sua primeira distinção pública.
Naqueles dezasseis anos reuniu e rodeou-se dos melhores em cada uma das áreas. A propaganda confundia-se com o turismo, o turismo confundia-se com a arte, a arte confundia-se com a cultura, a cultura confundia-se com a identidade e a identidade confundia-se com a política.
É também esta mescla única que lhe permite conquistar o respeito da elite artística e intelectual do país. Um respeito que foi para além da ideologia do próprio regime que servia.
António Ferro recriou o país. E em boa medida Salazar usou tanto António Ferro como Ferro usou o ditador para materializar uma ideia de Portugal que dificilmente partilhavam.
Morreu em Lisboa, em 1956. Tinha 61 anos. Poucos dias mais tarde a revista Time escrevia: «O seu país deve deplorar profundamente a morte prematura de quem tanto fez por ele».
O contador de histórias, que é um homem do mundo, tinha mudado a forma como mundo olhava para aquele Portugal.