O 1º Gabinete de Imprensa
«O País está todo entre a Arcada e São Bento», conta Eça de Queiroz, em Os Maias. Entre a Arcada e São Bento movimentam-se as fontes do serviço Informação da Arcada criado pelo Estado durante a Monarquia Constitucional e que perdura até 1974. Pesquisa de Vasco Ribeiro (Universidade do Porto)
De boatos a informação fidedigna
A Arcada, durante a Monarquia Constitucional, representa o centro governativo e administrativo do país. É o topónimo usado para identificar os arcos adjacentes aos ministérios no Terreiro do Paço. A concentração geográfica de quase todos os ministérios nesta praça transforma-a no epicentro da atividade política e consequentemente, da atividade jornalística.
Palco privilegiado de lutas políticas despoleta a criação de várias fontes de informação que são vorazmente consumidas pelos repórteres. O Café Martinho da Arcada assume um papel preponderante no intercâmbio de informações mas também de muito ruído – boatos e intrigas são igualmente propagados neste local.
O ambiente de intriga foi, aliás, registado em livros de memórias e diários de políticos e outras figuras que frequentavam este local. Por exemplo, um político e pensador da época, António Sérgio, em Ensaios, recordou o boato da perseguição a Oliveira Martins – Ministro da fazenda – em 1983, durante o reinado de D.Luís I. «O enredo que havia de o derrubar ia-se tecendo pela Arcada, nos jornais, no Parlamento». «O primeiro gabinete de imprensa», em Portugal, estava criado mas de forma volátil e não profissional.
António Teixeira de Sousa, Ministro em vários governos da Monarquia Constitucional, em 1911, comentou na obra Para a História da Revolução, os boatos e informações que indicavam a possibilidade de uma revolução política iminente. «Durante o mês de janeiro de 1908 muito se falava de revolução. Eu tinha somente a informação da Arcada,que é muito fértil em boatos fantasistas».
Apesar destes indubitáveis registos, «não há qualquer documento oficial, notícia ou relato que demostrasse a existência de um serviço, uma sala ou gabinete destinados a acolher os muitos repórteres que povoavam diariamente a Arcada, com o objetivo de recolher informações dos ministérios» antes do 5 de outubro de 1910.
Contudo, há um episódio narrado por Jorge de Abreu, jornalista d’O Século,em que é revelada a rotina governamental de distribuição de informação pelos repórteres, que chamavam «noticiário da Arcada»: «Um governo da monarquia indispôs-se com o diário de Silva Graça [O Século] e proibiu as repartições oficiais de lhe facultarem quaisquer informações de caráter noticioso. O Séculoensaiou tornear a dificuldade (…) Subornou-se um empregado do órgão ministerial, empregado que, todas as noites, metia disfarçadamente no barril do lixo, colocado à porta da rua, as provas tipográficas com o noticiário da Arcada».
«Ontem, pelas 3 horas da tarde constou no Gabinete dos Repórteres, no Governo Civil, que pouco antes tinham sido desembarcadas na ponte dos vapores do Cais do Sodré duas macas conduzindo dois homens feridos». A existência de serviços governamentais de distribuição de informação para imprensa não eram exclusivo da Arcada. Havia também o Gabinete dos Repórteres, em frente ao Governo Civil de Lisboa, entre a Rua Serpa Pinto e a Rua Anchieta, que, no final do século XIX fornecia informações da responsabilidade deste organismo governamental (crimes, detenções, óbitos).
No alvoroço dos primeiros dias da 1º República, e segundo as Memórias de Raul Brandão, «eram dadas informações aos repórteres neste gabinete». «[O Sr. Paulo Cancela de Abreu] Vem publicado no Dia, mas foi transcrito dum jornal, que não é monárquico e teve informação oficial do Gabinete dos Repórteres».
No raiar da 1ª República, o Diário de Notícias publicou uma pequena notícia onde se lia que os repórteres dos jornais diários de Lisboa haviam sido «amavelmente recebidos» por altos representantes da recém-ativada Polícia de Segurança. Nas instalações do Ministério do Interior, no Terreiro do Paço, as autoridades republicanas prometeram «fornecer aos representantes dos referidos jornais todas as informações públicas».
A «institucionalização» d' Arcada
A 19 de novembro de 1920, foi mandada publicar uma portaria que institucionalizou a existência de um Gabinete de Imprensa da Arcada. Agora sim, de forma oficial, estava registada a existência do «primeiro gabinete de imprensa», em Portugal.
«Portaria nº 2514 – Manda o Governo da República Portuguesa, Presidência do Ministro, instalar definitivamente os serviços de informação da imprensa, junto dos ministérios, no gabinete existente no Ministério do Interior, cedido há meses, para esse efeito, aos representantes dos jornais diários de Lisboa. Paços do Governo da República, 19 de novembro de 1920. O Presidente do Ministério, António Joaquim Granjo, O Ministro do Interior, Felisberto Alves Pedrosa».
Em tempo de Ditadura
Mas, tudo voltou a retroceder quando, em 1926, foi instaurada uma Ditadura Militar, após o Golpe Militar liderado pelo General Gomes da Costa. Tal retrocesso ficou mais evidente, quando se leu a 18 de fevereiro de 1928, um ofício que contém um «apelo do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboapara a manutenção de um gabinete para os jornalistas no ministério».
A 13 de outubro de 1930 foi realizada «uma cerimónia de inauguração (…) do novo gabinete de imprensa do Ministério do Interior». Portugal estava em plena Ditadura Militar e Nacional. A criação deste gabinete foi noticiado pelos grandes diários da cidade. No evento da sua inauguração, Martinho Simões, o novo Ministro do Interior e o jornalista, Júlio de Almeida, do Diário de Notícias discursaram.
O governante sublinhou que o «gabinete condigno, da sua alta e patriótica função junto dos governos, se deve à ação desenvolvida até este tempo [pelos jornalistas]».
Já o Júlio Moreira, falou em nome de todos os jornalistas e mostrou-se «conhecedor das diferentes fases dos Gabinete de Imprensa [da Arcada]». A censura foi uma ferramenta de consolidação da Ditadura Militar e Nacional, ao mesmo tempo que esta investia nos serviços de imprensa das instâncias governamentais.
«O chefe do distrito capitão Luiz de Moura depois de uma conferência que hoje de tarde teve com os seus representantes de vários jornais que fazem serviço no Governo Civil, resolveu que o novo gabinete dos repórteres fique instalado no antigo gabinete da autarquia administrativa. Este gabinete que vai sofrer grandes transformações, terá também um telefone privativo».
«Politicamente só existe o que o Estado sabe», era o que António de Oliveira Salazar defendia. Com o Estado Novo, a Arcada profissionalizou-se. O Gabinete de Imprensaalém da importância política que representava, o governante via este serviço como uma pedra basilar na promoção da sua ação governativa. Para além deste mecanismo, a censura era outro meio de sedimentação da ideologia do Estado Novo. Deste modo, o Regime incrementou e redinamizou a assessoria de imprensa como controlo a informação pública.
A Organização da Informação
Com a criação do SPN – Secretariado Nacional da Propaganda - em 1933, é estabelecido que, entre muitas outras atribuições, esta estrutura governamental devia «servir permanentemente como elemento auxiliar de informação dos respetivos Ministérios». Em 1945 passa a chamar-se de SNI – Secretariado Nacional de Informação mas as diretrizes mantêm-se inalteradas. A Informação da Arcadafuncionou, então, sob alçada do SPN/SNI e tinha a sua atividade minuciosamente reportada no Boletim quinzenal produzido por estes organismos, nomeadamente pela secção de Informação e Imprensa.
Nos minuciosos relatórios também se confirma a existência de «dois redatores do Ministério do Interior». Os recortes de imprensa eram igualmente elaborados e distribuídos com a maior organização. Os recortes de imprensa, um serviço de análise e recolha dos destaques noticiosos, assemelhavam-se ao que hoje se designa por clipping.
Posteriormente os recortes diários e semanais eram distribuídos pelos seguintes Boletins: «Nacional», «Imprensa do Porto», «Província», «Arquipélago dos Açores», «Insular da Angra do Heroísmo», «Insular da Horta», «Madeira», «Colonial Portuguesa: Angola», «Colonial Portuguesa: Moçambique», «Colonial Portuguesa no Estrangeiro: Brasil» e «Colonial Portuguesa no Estrangeiro: América do Norte e Argentina».
O SPN/SNI promoveu ainda a criação de outros gabinetes de imprensa, nomeadamente, na Câmara Municipal de Lisboa, em 1935. Mais tarde, em 1957 é criada a Sala de Imprensa, no Palácio da Foz – sede deste organismo – para acolher, principalmente, jornalistas estrangeiros.
Foi precisamente durante o Estado Novo que mais se produziram textos de redação com informações distribuídas pela Arcada. A instrumentalização da imprensa foi além da censura ou da propaganda. Havia um grupo de jornalistas portugueses e estrangeiros que eram pagos para escreverem artigos de acordo com as instruções recebidas pelo SPN/SNI. Neste contexto, o antigo jornalista do Diário de Lisboa,José Estevão Santos Jorge, entrevistado por Adelino Gomes, em 2009, assume o papel preponderante da Informação da Arcadadurante o Estado Novo.
Naquele tempo as notícias oficiais chegavam através do SPN. Os jornais ficaram danados. E então inventaram esse sistema: um Gabinete de Imprensa (…) no Ministério do Interior, onde havia um chefe. No meu tempo era Júlio de Almeida, redator do Diário de Notícias e alto funcionário público. Coligia-se lá a informação de todos os ministérios e mandava-se para os jornais. Estes pagavam uma avencazinha. Era preciso uma certa habilidade para a gente se acercar dos funcionários – não falávamos nem com os ministros nem com os secretários de Estado».
O funcionamento desta repartição assemelhava-se a um dos muitos serviços que são atualmente oferecidos por uma agência de comunicação ou disponibilizados por um gabinete de comunicação de uma qualquer instituição, isto é, ser um intermediário entre as instituições e os órgãos de comunicação.
As rotinas profissionais dos jornalistas encarregues de recolher as informações da Arcadaforam também descritas por José Estevão Santos Jorge.
«No Diário de Lisboa esse serviço [Informação da Arcada] até chegou a ser feito, no princípio, pelo Dr. Mário Neves. Havia um rapazinho da Casa da Imprensa ou do Sindicato, não me lembro ao certo, que ia lá buscar as cópias dos textos e distribuí-as pelos jornais, ganhando também uns tostõezinhos. Morreu um colega que fazia a Informação da Arcadapara o Diário de Lisboae o Dr. Norberto Lopes perguntou ao meu pai se eu não queria substituí-lo. Na altura ninguém queria fazer uma coisa daquelas: tinha que se dar a volta toa pelos ministérios, Presidência da República e Presidência do Conselho, logo de manhã».
«Havia uma figura, nem sempre era um jornalista, que recolhia a informação dos ministérios. Como estavam todos no Terreiro do Paço - a exceção, que me lembre, era o Ministério da Educação -, era conhecido como o “informador da Arcada”», acrescentou ainda o antigo jornalista do Diário de Lisboa.
Afonso Serra, antigo jornalista d’A Capital,na obra Memórias Vivas do Jornalismotambém confessa a existência da Informação da Arcada, em particular o seu funcionamento: «Da política eram geralmente o que enviavam do SNI, mandavam as notícias… E havia um informador permanente na Arcada que funcionava no Ministério do Interior. (…) Estava lá um repórter permanente. Fornecia para o jornal dele e para os outros jornais. Era o Almeida, o Almeidinha. Primeiro foi o Almeida pai, depois o Almeida filho…Eram jornalistas efetivos do Diário de Notícias. (…) E ganhavam, isso era remunerado. O teor das notícias eram sempre assuntos relacionados com a ação organizativa do regime.
«Era o que calhava. E o que interessava aos Ministérios. E depois também passou o SNI a fornecer informações. Mas a Arcada continuou sempre a funcionar. Havia muitos pormenores do dia…».
Voltando a Júlio de Almeida, epíteto da Arcada durante o Estado Novo, este mereceu elogios dos colegas de profissão aquando da inauguração do Gabinete, em plena Ditadura Nacional, tendo ele sido funcionário e «chefe» da Informação da Arcada. Além da atividade jornalística, assumia um serviço de «assessoria de imprensa» na Informação da Arcada.
«Esta situação configurava, na verdade, o exercício de três funções-tipo na imprensa: Informador, repórter e jornalista».
Durante os governos de Salazar e Marcelo Caetano, a Informação da Arcadaintensificou a sua atividade e profissionalizou os seus serviços. A Assembleia Nacional chegou mesmo a destacar a eficiência deste serviço: «Talvez fosse de desejar que o Diário das Sessões seguisse para os Ministérios, via Arcada.Complementar-se-ia assim maravilhosamente a ação daquele prestimoso serviço».
O próprio Salazar, numa troca de correspondência com o matutino A Voz, elogiava a disponibilidade dos jornais para publicarem as notas de imprensa oficiais:
«Devo porém dizer que não tem sido preciso obrigar nenhum periódico a publicar as notas do governo, mesmo as mais extensas: todos têm prestado esse serviço voluntariamente».
Na «primavera marcelista», a atividade do gabinete foi reforçada pelo novo Estatuto da Imprensa. Neste documento, emitido pelo SNI/SEIT (Secretariado de Estado de Informação e Propaganda), pôde ler-se que, para que «os serviços centrais de informação prestem os esclarecimentos solicitados pelos jornalistas, previu-se a designação de informadores oficiais dos ministérios e dos restantes organismos e entidades públicas».
As mudanças da Revolução
Apesar da Informação da Arcada ter sido uma estrutura de apoio à propaganda do Estado Novo, esta não acabou subitamente com a revolução de abril de 1974.
A partir deste marco histórico, a Informação da Arcada, assim como outras divisões do SNI/SEIT, passam para a responsabilidade do MFA – Movimento de Forças Armadas.
O fim do Gabinete de Imprensa da Arcada nada teve que ver com a estabilização da democracia. A fragmentação da atividade política e a descentralização do poder executivo por várias instâncias do poder estiveram no epicentro do desaparecimento da Informação da Arcada.
Os testemunhos e fontes usados no corpus deste documento demostram que a Informação da Arcada teve um papel relevante e dinâmico enquanto serviço governamental no período histórico compreendido entre o reinado de D.Luís I e o II Governo Provisório do PREC (Processo Revolucionário em Curso).