Baghdad Bob vs. Forças Armadas dos EUA

O gatekeeper de Saddam

De ministro da Informação de Saddam Hussein a fenómeno da cultura pop. Mohammed Saeed al-Sahhaf recusa-se a aceitar, nas suas declarações aos Media, a tomada de Bagdade pelas Forças Armadas dos EUA. São essas declarações que o celebrizam como Baghdad Bob e que fazem dele uma estrela de culto no mundo ocidental.

“The Americans are going to surrender or be burned in their tanks. They will surrender, it is they who will surrender.” [«Os americanos vão render-se ou ser queimados nos seus tanques. Eles vão render-se, são eles quem se vai render»].

A 8 de abril de 2003Mohammed Saeed al-Sahhaf encarava os repórteres, determinado. No topo do Palestine Hotel, em Bagdade, o ministro da informação de Saddam negava o inegável. Por trás de si, o fumo enchia o céu e podiam escutar-se sirenes em ruído de fundo. Os soldados dos Estados Unidos invadiam a cidade. Mas Sahhaf mantinha a sua convicção: "There are no American troops in Baghdad!" [«Não há tropas americanas em Bagdade!»]. Seria a sua última comunicação pública enquanto ministro da informação de Saddam Hussein. No dia seguinte, Bagdade caía.

 

 

Do Iraque para o mundo

A cara e a voz da resistência. Sem nunca ter pisado o campo de batalha, Mohammed Saeed al-Sahhaf era uma das figuras da Guerra do Iraque.

Ministro do estrangeiro do regime de Saddam Hussein durante quase uma década, foi nomeado ministro da informação em abril de 2001. Um cargo que o projetou para o estrelato.

O carisma agigantou-se ao cargo e a fama de Sahhaf atravessou fronteiras; a veracidade dos factos tornava-se praticamente irrelevante, eclipsada por um discurso inflamado e moralizador das tropas; o poder emocional das suas declarações sobrepunha-se à obrigação informativa. Para o Iraque – com ecos no restante mundo árabe – já não se tratava apenas um ministro; era um herói nacional e um bravo defensor da honra iraquiana.

Para o Iraque – com ecos no restante mundo árabe – já não se tratava apenas um ministro; era um herói nacional e um bravo defensor da honra iraquiana.

Em todas as comunicações – mais ou menos verídicas, muito ou pouco aguerridas, mas sempre entusiásticas –, uma ideia comum: a de que o regime estava a lutar bravamente e a vencer por larga margem o inimigo ocidental.

Uma estratégia tudo menos ingénua. Sahhaf sabia que, de outro lado, o escutava também o inimigo. As suas palavras eram um dos trunfos do regime iraquiano no jogo psicológico da guerra.

Em março de 2003, a coligação britânica-americana deu início à intervenção militar no Iraque com um bombardeamento sobre Bagdade.

Durante a guerra no Iraque foram mortas cerca de 500 mil pessoas.

De ministro a meme

Os seus boletins diários, pontuados por uma comunicação expressiva e eternamente otimista, atravessaram fronteiras e fizeram as delícias dos ocidentais. Além de quebrar a seriedade dos ciclos noticiosos, Sahhaf representava um fenómeno nunca visto nos media internacionais e tornava-se uma figura de culto.

O carisma do ministro iraquiano conquistou até o Presidente norte-americano, George W. Bush. "Someone accused us of hiring him and putting him there. He was a classic" [«Alguém nos acusou de o contratar e de o colocar lá. Era um clássico»], afirmou o líder republicano, revelando que chegava a interromper reuniões para acompanhar as declarações do ministro iraquiano.

No início de abril de 2003, o ministro ganhou a alcunha de “Baghdad Bob” junto dos órgãos de comunicação norte-americanos, atentos às suas exageradas – e questionáveis – intervenções. Os meios britânicos preferiam chamá-lo “Comical Ali”, um trocadilho com “Chemical Ali”, a alcunha do ministro do interior iraquiano durante a Guerra do Golfo Pérsico.

Mohammed Saeed al-Sahhaf tornou-se um fenómeno da Internet, inspirando centenas de memes, páginas de fãs e até merchandise, como t-shirts, canecas e bonecos de plástico.

A 3 de abril de 2003, foi registado o domínio BaghdadBob.com, uma compilação humorística dos comentários do ministro. Em menos de dois meses, recebeu mais de 140 mil visitas.

O ministro iraquiano não escapava – pelo contrário, ansiava – pela atenção mediática, debitando uma cornucópia infindável de soundbites que os jornalistas reproduziam com fulgor.

Ao referir-se aos líderes norte-americanos e britânicos, foi eloquente: “an international gang of criminal bastards," "blood-sucking bastards," ignorant imperialists, losers and fools" [«um gangue internacional de sacanas criminosos», «sacanas sugadores de sangue», «imperialistas ignorantes, perdedores e idiotas»]. O Presidente dos Estados Unidos? "I speak better English than this villain Bush” [«Falo melhor inglês que este vilão do Bush»]. E quanto às tropas norte-americanas? "The infidels are committing suicide by the hundreds on the gates of Baghdad” [«Os infiéis estão a cometer suicídio às centenas nos portões de Bagdade»].

As melhores frases de Saeed al-Sahhaf estão compiladas no DVD “Comical Ali”.

A sua retórica podia ser impressionante, mas palavras nenhumas tinham a capacidade de impedir a invasão de Bagdade. As forças americanas apertavam cada vez mais a corda em volta do pescoço do regime iraquiano.

O fim de uma era

Em abril de 2003, os ecrãs de televisão transmitiam duas imagens em split screen. De um lado, Sahhaf, afirmando que não existiam forças da coligação em Bagdade; do outro, tanques americanos a percorrer as ruas. Um momento simbólico, de acordo com o Capitão Frank Thorp, do U.S. Central Command no Qatar. "At that point, I knew the war of words was over" [«Nessa altura, sabia que a guerra das palavras estava terminada»].

Do lado iraquiano, havia quem não estivesse tão convencido. As intervenções de Sahhaf terão enganado até as próprias tropas nacionais, levando-as a crer que as forças iraquianas tinham reconquistado o aeroporto de Bagdade.

Um oficial foi enviado para confirmar os rumores. "Are you out of your minds? The whole damn American Army is at the airport!" [«Estão malucos? Todo o raio da Armada Americana está no aeroporto!»]

 

 

A estátua de Saddam tinha sido derrubada e o regime dava o último suspiro, mas Sahhaf não arredava pé. Na madrugada de 10 de abril, a realidade bateu à porta, ao ritmo constante dos tanques que se aproximavam dos estúdios de transmissão.

"Sahhaf slowly removed his black beret" [«Sahhfa tirou lentamente a sua boina preta»], conta Raibah Hassan, gerente do estúdio. “He told us to keep on re-broadcasting until 3 am. He said goodbye, and then disappeared out of the back door” [«Ele disse-nos para continuarmos a retransmitir até às três da manhã. Despediu-se e depois desapareceu pela porta das traseiras»]. Com a sua partida, o regime moribundo de Saddam ficava sem voz.

Em 2015, o Presidente norte-americano Barack Obama foi comparado a Baghdad Bob por afirmar que “ISIS is contained”. As declarações do líder sobre a segurança nacional dos Estados Unidos foram consideradas por alguns meios tão desfasadas da realidade como as comunicações do antigo ministro iraquiano.

Depois de ser detido pelas forças norte-americanas para interrogatório, em junho de 2003, Sahhaf voltou à ribalta em entrevistas com a Al-Arabiya e Abu Dhabi TV. O antigo ministro recusou retirar os seus comentários sobre a tomada de Bagdade, afirmando que as informações eram de "authentic sources – many authentic sources" [«fontes autênticas – muitas fontes autênticas»]. Quanto à sua atuação enquanto ministro, Sahhaf foi perentório: “The information was correct, but the interpretations were not” [«A informação estava correta, mas as interpretações não»].

Mohammed Saeed al-Sahhaf afastou-se do palco mediático e a sua localização atual é incerta, embora existam rumores de que se encontra no Qatar.

Mais de uma década depois da câmara de se ter apagado e do seu microfone se ter desligado, continua imortalizado no sistema mediático como uma das principais figuras da Guerra do Iraque. Sem recorrer a armas ou a patentes, sem derramar sangue ou fugir às balas; apenas com o poder das imagens e das palavras.