Fátima e o Comunismo: um bloco de betão

Um bloco de betão que pertenceu ao Muro de Berlim encontra-se hoje em destaque no vasto recinto do Santuário de Fátima: nenhum peregrino deixa de o ver.

Esta relíquia da Guerra Fria foi uma dádiva ao Santuário de um emigrante português residente na Alemanha. Encontra-se ali desde 13 de Agosto de 1994. Pesa 2600 quilos, tem 3,6 metros de altura e 1,20 de largura.

O Muro, que esteve erguido na capital alemã – então cidade dividida – entre 1961 e 1989 – funciona hoje, essencialmente, como um símbolo da derrocada do chamado «socialismo real» sempre combatido pela «mensagem de Fátima». Com uma notável coincidência: tanto as aparições na Cova da Iria como a implantação do primeiro regime comunista aconteceram em 1917. Com seis meses de diferença entre a visão inicial dos pastorinhos e a tomada do poder pelos sovietes liderados por Lenine na Rússia.

A consagração da Rússia

Segundo Lúcia, na aparição de 13 de julho desse ano Nossa Senhora terá transmitido as seguintes palavras aos videntes:

«Virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora dos primeiros sábados. Se atenderem aos meus pedidos, a Rússia converter-se-á e terão paz. Se não, espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas. Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-Me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz».

Estas palavras só foram fixadas muito depois, num manuscrito escrito por Lúcia – única sobrevivente dos pastorinhos – em 31 de agosto de 1941, no convento de Tui (Galiza) onde se recolhera como religiosa. Surgem na chamada «terceira memória» da vidente, redigida a pedido do bispo de Leiria, D. José Correia da Silva.

O carácter político desta mensagem, embora não constituindo dogma de fé, viria a ser acolhido ao mais alto nível pelos representantes da Igreja Católica. Começando pelo Papa Pio XII, durante a II Guerra Mundial, quando dirigiu uma mensagem radiofónica no nosso idioma destinada aos portugueses.

Nessa mensagem de 31 de outubro de 1942, quando o «quarto ano de guerra» havia amanhecido «mais sombrio ainda», o representante máximo da Igreja consagrou o Mundo ao Imaculado Coração de Maria, fazendo uma referência velada à Rússia então submetida ao regime totalitário de Estaline, em súplica a Nossa Senhora: «Aos povos pelo erro ou pela discórdia separados, nomeadamente àqueles que Vos professam singular devoção, onde não havia casa que não ostentasse a vossa veneranda ícone (hoje talvez escondida e reservada para melhores dias), dai-lhes a paz e reconduzi-os ao único redil de Cristo, sob o único e verdadeiro Pastor».

De Fátima ao Vaticano

Também por iniciativa de Pio XII, dez anos depois, os povos da Rússia foram consagrados ao Imaculado Coração de Maria. Satisfazendo assim o pedido da Senhora de Fátima reproduzido por Lúcia na sua missiva de 1941.

Desta forma, o Sumo Pontífice correspondia igualmente a uma sugestão que lhe fora dirigida pela própria vidente, em carta endereçada ao Vaticano com data de 2 de Dezembro de 1940: «Santo Padre, Nosso Senhor prometeu a nossa pátria uma protecção muito especial durante esta guerra, em consideração da consagração que os reverendos prelados portugueses fizeram da nação ao Coração Imaculado de Maria. Esta protecção será a prova das graças que Ele derramará sobre outras nações se, como Portugal, elas lhe foram consagradas».

A consagração foi efectuada numa carta apostólica do Papa, datada de 7 de julho de 1952, sob o título Sacro Vergente Anno.

«Tal como há alguns anos nós consagrámos todo o género humano ao Coração Imaculado de Maria, Mãe de Deus, hoje consagramos e confiamos todos os povos da Rússia a este Imaculado Coração».

Pio XII fazia questão em distinguir o «comunismo ateu», enquanto doutrina, daqueles que nele acreditavam e que a todo o momento poderiam reconsiderar. «Condenação do erro e caridade para quem erra», sublinhava o Papa nesta carta apostólica. «Por uma verdadeira paz, por uma fraterna concórdia e pela devida liberdade a todos [na Rússia] e em primeiro lugar à Igreja».

O Sumo Pontífice satisfazia assim o apelo que lhe fora transmitido por Lúcia. A mensagem de Fátima chegava definitivamente ao Vaticano.

 

Antecipando Gorbatchov

Os sucessores de Pio XII adoptaram uma linha muito semelhante.

Em 21 de novembro de 1964, no fim da terceira sessão do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI fez a consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria.

E a 25 de março de 1984 João Paulo – o Papa oriundo do Leste, que em 1964 fora sagrado arcebispo de Cracóvia na Polónia comunista – renovou esta consagração, perante 250 mil pessoas reunidas na Praça de São Pedro.

«De modo especial Vos entregamos e consagramos aqueles homens e aquelas nações que desta entrega e desta consagração têm particularmente necessidade», especificou, em natural alusão às repúblicas anexadas por Estaline que viviam ainda na esfera soviética – começando pela Rússia.

Menos de um ano depois, a 11 de março de 1985, o reformador Mikhail Gorbatchov assumia o poder na URSS. E a partir de 1989 o comunismo entrava em derrocada em toda a Europa Central e de Leste.

 

As heresias do nosso tempo

À escala nacional, e ainda antes da divulgação da carta da Irmã Lúcia, já os bispos se mobilizavam contra o comunismo. A primeira posição clara nesta matéria ocorreu precisamente em Fátima, durante uma reunião do episcopado português em maio de 1936. Nessa altura, quando estava iminente o início da guerra civil em Espanha, os prelados prometeram encabeçar no dia 13 de maio de 1938 uma grande «peregrinação nacional» de graças à «santíssima Virgem Mãe de Deus» caso providenciasse «para Portugal a vitória sobre o comunismo ateu». A promessa foi cumprida, numa solene acção de graças, perante cerca de meio milhão de fiéis em Fátima.

O mais influente destes prelados era o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, amigo muito próximo de Oliveira Salazar desde o tempo em que ambos tinham sido estudantes universitários em Coimbra.

No seu livro Como se Levanta um Estado (editado originalmente em França, em 1937), o ditador português havia assumido, de forma clara, o seu visceral anticomunismo: «Somos, pois, contra todos os internacionalismos, contra o comunismo, contra o socialismo, contra o sindicalismo libertário, contra tudo o que diminui, divide, desagrega a família, contra a luta de classes, contra os sem-pátria e os sem-Deus, contra a escravatura do trabalho, contra a concepção puramente materialista da vida, contra a força como origem do direito. Somos contra todas as grandes heresias do nosso tempo».

Numa carta endereçada a Salazar, em 8 de maio de 1946, Cerejeira transmitiu-lhe estas palavras: «O milagre de Fátima está à vista. Tu estás ligado a ele: estavas no pensamento de Deus quando a Virgem Santíssima preparava a nossa salvação».

Palavras que ilustram bem a estreita relação entre a Igreja Católica e o Estado Novo. Já em outubro de 1940, ao receber as credenciais do embaixador Carneiro Pacheco como representante diplomático português na Santa Sé, Pio XII acentuara: «O Senhor [Deus] deu à nação portuguesa um chefe de governo que tem sabido conquistar não só o amor do seu povo mas também o respeito e estima do mundo».