A guerra na ponta da crónica

Muitos dos momentos da História mais recente da Humanidade chega-nos através de relatos de jornalistas. São aquelas situações que ninguém quer que existam mas que os jornalistas adoram reportar. Os grandes conflitos bélicos do Séc. XX ficam registados em algumas das melhores crónicas do Jornalismo assinadas por autores que se destacam.

Ser cronista de guerra

Os jornais enviavam os seus primeiros correspondentes para o foco da violência e, a par das reportagens de guerra, surgiam as crónicas de guerra. Mas o que diferencia um repórter de guerra de um cronista de guerra?

Muitas vezes, os dois géneros andam de mãos dadas. No entanto, enquanto a crónica regista apontamentos mais opinativos, a reportagem procura mais os factos. Numa verdadeira aproximação do jornalismo à literatura, a crónica acaba por se distinguir com o seu estilo muito próprio. Prova disso é o aparecimento do jornalismo literário.

 

John Sack

Este novo género foi personificado na escrita de muitos jornalistas. John Sack foi um deles. Ao criar uma narrativa criativa para reportar os factos, produzia as histórias mais comoventes dos esforços de guerra.

O seu estilo tão próprio de relatar os acontecimentos mais cruéis e violentos da guerra consolidou-se com a sua longa e duradoura colaboração com a revista Esquire. Sack tornou-se um verdadeiro especialista em jornalismo de guerra, chegando a cobrir, em primeira mão, cada guerra dos EUA nos últimos 60 anos.

 

 

Desde a guerra da Coreia, passando pelo Vietname, a anexação do Kwuait pelo Iraque, e a guerra nos Balcãs, John Sack acompanharia ainda as tropas norte-americanas a expulsar membros da al-Qaeda das montanhas afegãs. Sempre acompanhada da crónica, a questão da objetividade impõe-se, onde o autor e o objeto de notícia não se distanciam um do outro. O jornalista chegou a assumir: “I myself don’t believe in objectivity – no New Journalist does.” [Eu próprio não acredito na objetividade – nenhum novo jornalista acredita]

John Sack chegou mais longe ao dizer que quaisquer esforços para tentar alcançar a objetividade só distorcem a verdade dos relatos. Mas estas declarações não foram a única controvérsia presente na carreira de Sack. Autor de várias obras, o livro An Eye for an Eye: The Untold Story of Jewish Revenge Against Germans in 1945abalou fortemente a opinião pública, ao abordar o assunto sensível das perseguições entre alemães e judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Ryszard Kapuściński

Ryszard Kapuściński foi outro grande percursor do jornalismo literário. Apesar de ter colaborado com vários órgãos de comunicação, Kapuściński distinguiu-se enquanto correspondente da agência noticiosa polaca Polska Agencja Prasowa (PAP).

Ao longo de 10 anos, Kapuściński cobriu 50 países para a PAP. Viveu 27 revoluções e golpes de Estado, foi preso cerca de 40 vezes e sobreviveu a quatro sentenças de morte. Os seus trabalhos mais conhecidos são o relato do fim dos impérios coloniais europeus em África. As suas experiências durante a guerra pela independência de Angola, nos anos 60 e 70, foram compiladas no livro Mais um dia de Vida – Angola 1975. Kapuściński publicou dezenas de livros, desde reportagem e ficção a fotografia.

O seu estilo, unanimemente cunhado de «jornalismo mágico», faria do jornalista polaco um dos mais aclamados do século XX.

 

Os antecessores

Nos dias de hoje, o género da crónica está estabelecido e é largamente conhecido. Contudo, existem outras narrativas mais antigas que envolveram os seus leitores nas estórias e que resultaram igualmente em livros. No século XIX, Flora Tristán distinguiu-se pelas suas crónicas.

Esta sua faceta iria torná-la numa grande percursora dos direitos das mulheres e da classe trabalhadora. A sua obra Promenades in London(1840) relata as condições impactantes dos trabalhadores ingleses.

No entanto, foi com o livro Peregrinations of a Pariah(1838) que Flora Tristán revelaria os seus dons de cronista. Nele, a jornalista conta os acontecimentos políticos de um Peru assolado por guerras civis, através de um estilo marcadamente irónico e crítico, onde não falta um agudo sentido de observação. Infelizmente, os primeiros exemplares deste brilhante relato de viagem foram queimados publicamente na Plaza de Armas de Arequipa, no Perú.

 

 

Já no Brasil, em 1896, Machado de Assisficaria muito célebre com a sua crónica intitulada «Canção de piratas», publicada na coluna A Semana do jornal Gazeta de Notícias. Esta foi uma entre muitas crónicas que Machado Assis escreveu para demonstrar o seu posicionamento em questões delicadas da vida política brasileira, durante a guerra de Canudos. Este episódio opôs Antônio Conselheiro (fundador de um movimento popular que procurava estabelecer uma sociedade socialista) de um lado, e o Exército brasileiro do outro.

A imprensa brasileira de então, era marcada por um tom especialmente sensacionalista. De acordo com Machado de Assis, a imprensa, ao criticar e apelidar Antônio Conselheiro de «fanático», prejudicava a compreensão da opinião pública sobre a cena política.

Cansado da linha editorial de qualidade duvidosa da imprensa, Machado de Assis recorreu à crónica para defender Antônio Conselheiro.

 

Rubem Braga

Anos mais tarde, também no Brasil, Rubem Braga destacar-se-ia como um dos maiores cronistas brasileiros de sempre. A sua carreira de jornalista teve início durante a Revolução Constitucionalista de 1932, ao escrever para o jornal de Belo Horizonte, Diários Associados.

 

 

A crónica tornou-se a sua especialidade, e o seu estilo bastante mordaz e crítico, especialmente do Estado Novo brasileiro, valeu-lhe várias detenções.  Braga faria inúmeras contribuições para vários periódicos durante a sua carreira, atuando ainda como correspondente junto da F.E.B. (Força Expedicionária Brasileira) na Segunda Guerra Mundial, para o jornal Diário Carioca.

John Reed

No outro continente americano, um dos grandes cronistas de guerra que ficou para a História é John Reed.

Fazendo jus ao pressuposto de que atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher, Louise Bryant teve a sua quota parte como correspondente de guerra. Os dois apaixonados, já marido e mulher, tornaram-se nas primeiras testemunhas estrangeiras da revolução russa, entre agosto de 1917 e fevereiro de 1918.

A partir do seu quarto de hotel, os dois relatavam os acontecimentos da revolução em vários artigos, que mais tarde foram compilados no livro Six Red Months in Russia(de Bryant) e Ten Days that Shook the World(de Reed). Louise Bryant entrevistou várias figuras femininas proeminentes da revolução russa, como Katherine Breshkovsky, Maria Spiridonova e Aleksandra Kollontai, trabalhos que lhe valeram os títulos de sufragista e feminista.

 

 

Porém, a passagem de John Reed pela Rússia não ficaria imortalizada apenas no jornalismo. O filme Reds, de 1981, relata a história do casal americano durante a revolução de outubro. Com os atores Diane Keaton, Warren Beatty e Jack Nicholson, a obra cinematográfica ganhou 3 Óscares da Academia, incluindo o de Melhor Atriz Secundária e de Melhor Realizador.

 

 

No entanto, a revolução russa não foi o primeiro conflito que catapultou a carreira jornalística de Reed. Sempre grande defensor das ideias libertárias, Reed viu a revolução mexicana de 1912 como um acontecimento mediático, que reportou arriscando a sua vida. Durante este conflito, Reed chegou ainda a fazer uma entrevista histórica a Pancho Villa, um dos líderes da revolução camponesa, de quem se tornou amigo.

Com a reduzida escala dos acontecimentos bélicos do século XIX e início do século XX, não se via a necessidade de fazer proliferar o estilo da crónica. A Primeira Grande Guerra seria o primeiro grande conflito à escala mundial. Todos os elementos estavam reunidos para inverter esta tendência no jornalismo.

O Fator guerra

José Augusto Correia, correspondente do Diário de Notícias, encontrava-se em Paris quando foi ordenada a mobilização geral da população para a guerra que se avizinhava.

«Como por encanto, mudou completamente o aspeto cívico de Paris (…) a multidão apoderou-se das vias públicas, desfilando em colunas enormes e compactas», escreveria nas suas «Crónicas de Guerra».

 

 

Outro português que arriscou a vida nas trincheiras foiAntónio Lobo de Almada Negreiros, pai do artista Almada Negreiros. O correspondente enviava as suas crónicas de guerra a partir de França para o jornal O Século.

Apesar de se manter nesta publicação até 1933, Negreiros escreveu para muitos outros jornais lisboetas e estrangeiros. Em 1917, as suas vivências da Primeira Grande Guerra, contadas nas suas crónicas, foram compiladas no seu livro Portugal na Grande Guerra.

«O campo de batalha é um grande cemitério. Os montões de cadáveres dos soldados são facilmente ocultos à luz do sol que os apodrece».

«O esfuziar das bombas, o estampido dos canhões, o “ciciar” dos foguetões dos sinaleiros dariam ideia d’um fogo de artifício monumental, se todos estes instrumentos de morte não mugissem, como feras indomáveis, aos nossos ouvidos torturados. Andamos a saltar por cima das trincheiras, não sei para quê».

 

André Brun

Aos 36 anos, André Brun, capitão enviado do Corpo Expedicionário Português e com uma carreira conhecida nos teatros lisboetas como autor de peças, chega à Flandres em pleno cenário de guerra. Seriam estas experiências que dariam lugar ao seu livro de crónicas A Malta das Trincheiras. No seu estilo irónico e mordaz, Brun relata na primeira pessoa como era a vida quotidiana dos soldados nas trincheiras.

«Eu que escrevera para um álbum meia dúzia de linhas, que podiam parecer dum humorismo fácil, vi quanto as múltiplas angústias do meu espírito, acumuladas nos primeiros oito meses de trincheiras, me tinham levado a ser profeta em terra alheia». Expressões como «ir aos arames», «balázio» ou «camone», utilizadas nestas crónicas, dão ainda a entender que muita da gíria que ainda hoje se utiliza nasceu nas trincheiras da Flandres.

 

 

«Eu que escrevera para um álbum meia dúzia de linhas, que podiam parecer dum humorismo fácil, vi quanto as múltiplas angústias do meu espírito, acumuladas nos primeiros oito meses de trincheiras, me tinham levado a ser profeta em terra alheia».

Expressões como «ir aos arames», «balázio» ou «camone», utilizadas nestas crónicas, dão ainda a entender que muita da gíria que ainda hoje se utiliza nasceu nas trincheiras da Flandres.

Júlio Mesquita

Júlio Mesquita foi um jornalista brasileiro que acompanhou os desenvolvimentos da Primeira Guerra Mundial através de várias crónicas no jornal O Estado de S. Paulo, do qual foi também o seu primeiro diretor.

Numa análise semanal, jornalística e reflexiva, Mesquita assumiu o papel de informar e explicar os acontecimentos aos leitores. Apesar de o jornalista não se encontrar no terreno do conflito, foi precisamente este distanciamento que lhe permitiu relatar a guerra com exatidão e objetividade. Os textos jornalísticos acabariam por ser compilados na obra A Guerra 1914-1918.

 

 

Tratando-se do primeiro conflito que trazia uma afluência enorme de correspondentes de vários pontos do mundo, a censura era bastante apertada e o acesso dos jornalistas às linhas da frente, proibido.

Basil Clarke

Basil Clarke foi um dos correspondentes que desafiou esta interdição de Lord Kitchener. Correndo o risco de ser preso, Clarke manteve-se em Dunkirk, fazendo-se passar por refugiado, para ter acesso às estórias provenientes das frentes de combate. Apesar das dificuldades, este ato fora-da-lei rapidamente deu frutos: Clarke foi o primeiro jornalista a chegar a Ypres após a sua destruição pelos alemães a novembro de 1914.

“The city, so silent and empty and waste, might have been unpeopled by a plague, shattered by a mad god. You looked, and still looking, could hardly believe.” [A cidade, tão silenciosa e vazia e desperdiçada, poderia ter sido despovoada por uma praga, destruída por um deus louco. Olhava-se, e ainda a olhar, mal se acreditava]

 

 

Além disso, ficou conhecido pela sua memorável descrição da atmosfera em Dunkirk depois de os Aliados ganharem a vantagem estratégica na Batalha de Yser.

O seu relato do combate sangrento no Dia de Natal em 1914 ofereceu ainda uma perspetiva completamente diferente das estórias que passavam sobre uma Trégua de Natal. As descrições de Clarke, embelezadas por um estilo literário que desafiava a objetividade adotada pelo jornalismo ocidental, são um contributo essencial para o relato independente de guerra.

Em janeiro de 1915, Clarke foi forçado a partir para Inglaterra, sob ameaça de ser detido pela polícia. A aventura da sua vida dava-se por terminada. Mais tarde, Clarke afastava-se do jornalismo e tornou-se o pioneiro das Relações Públicas no Reino Unido.

 

Philip Gibbs

Philip Gibbs foi outro jornalista que sofreu na pele a censura imposta pelos militares durante a Primeira Guerra Mundial. Escapou várias vezes das autoridades britânicas e francesas para poder levar as suas estórias da frente de combate ao jornal Daily Chronicle, mas também foi preso mais do que uma vez pela sua persistência.

Os seus relatos da guerra foram considerados por muitos como prodigiosos. Além das inúmeras crónicas que escreveu para a imprensa, o trabalho de Gibbs sobre o conflito notabilizou-se através dos livros The Soul of the War (1915), The Battle of the Somme (1917), Now It Can Be Told (1920) e The Realities of War (1920).

 

 

“Pains and penalties were threatened against any newspaper which should dare to publish a word of military information beyond the official communiques issued in order to hide the truth”, escrevia Gibbs mais tarde sobre as suas experiências. [Penas e sanções ameaçavam qualquer jornal que se atrevesse a publicar uma palavra de informação militar para além dos comunicados oficiais publicados de forma a esconder a verdade]

Gibbs foi capturado em Le Havre, em 1915. Depois de ter sido ameaçado com “dolorosas consequências”, o jornalista decidiu voltar a Inglaterra e retirar-se da guerra.

O seu trabalho como jornalista continuou – e voltou a ser correspondente de guerra quando as tensões se reavivaram na Europa em 1939, ainda que durante pouco tempo. Não se pode falar das crónicas da Primeira Guerra Mundial sem abordar Ernest Hemingway. A experiência do então jornalista a conduzir ambulâncias na frente de batalha, em Milão, serviria de inspiração para o seu livro de não-ficção Death in the Afternoon.

Martha Gelborn

Contudo, foi na Guerra Civil Espanhola, em 1937, que Hemingway, correspondente da North American Newspaper Alliance, escreveu sobre os conflitos armados. As suas vivências resultaram, mais tarde, no seu aclamado romance For Whom the Bell Tolls. Foi igualmente nessa altura que conheceu Martha Gellhorn, uma outra correspondente de guerra destacada pelo Collier's Weekly para cobrir a guerra em Espanha.

 

 

A carreira jornalística de Gellhorn foi marcada pela cobertura dos maiores eventos bélicos do século XX. A Segunda Guerra Mundial tornou-se o foco das suas crónicas mais conhecidas.

Gellhorn reportou a guerra a partir da Finlândia, Hong Kong, Birmânia, Singapura e Inglaterra. Mais tarde, a jornalista admitia: “I followed the war wherever I could reach it.” [Eu seguia a guerra para onde a conseguia alcançar]

Ao lhe faltarem credenciais de imprensa para assistir aos desembarques da Normandia, Gellhorn escondeu-se numa casa de banho de um navio-hospital. Foi a única mulher presente no Dia D, a 6 de junho de 1944. Esteve igualmente entre os primeiros jornalistas a cobrir a libertação do campo de concentração de Dachau. Em 1999, foi estabelecido o Martha Gellhorn Prize for Journalism. Entre outras distinções, Martha Gellhorn foi a única mulher a ser reconhecida na coleção de selos American Journalists de 2008.

Por fim, a crónica

Quando a imprensa dava os seus primeiros passos, a fronteira entre o escritor e o jornalista era muito esbatida. A crónica é a génese deste cruzamento entre jornalismo e literatura, quando não se sabia bem onde começava a estória e acabavam os factos.

As características da crónica desde cedo prenderam os seus leitores. A aproximação formal ao realismo da notícia, a narrativa na primeira pessoa e a atualidade dos acontecimentos descritos, desde logo ultrapassaram o simples relato vazio de interpretação tão ligado à cobertura jornalística.

Mais do que informar, a crónica permite ao seu autor assumir uma posição mais reflexiva e pessoal. De jornalista a escritor, o autor torna-se uma só figura, com o infindável poder de transportar os seus leitores para outras realidades, até ali muitas vezes desconhecidas. O caminho para cimentar um lugar próprio para a crónica estava palmeado.