Fátima e a Igreja: o povo andou sempre à frente

Fátima, fenómeno ímpar de religiosidade popular, impôs-se à Igreja – e não o contrário.

Ao contrário do que muitos erradamente supõem, a hierarquia católica reagiu com muita prudência aos ecos das primeiras aparições ocorridas durante a Primavera e o Verão na Cova da Iria. Jornais ligados à Igreja (como A Época e A Ordem) e até membros da hierarquia eclesial pronunciaram-se com extrema cautela e por vezes até com manifestações de cepticismo perante o fenómeno das aparições. Estava sobretudo em causa uma precaução generalizada contra fenómenos de «crendice popular», como eram apelidados à época.

«Um ponto que há que destacar na reconstituição histórica diz respeito à prudência, às hesitações, ao carácter difícil e paulatino da resposta católica inicial a Fátima, que vai do silêncio à reserva, do apelo à prudência, à aceitação e defesa face aos ataques anticlericais, sempre em pano de fundo», sublinha o historiador Bruno Cardoso Reis na revista Análise Social (2001).

O povo à frente

Em Fátima foi sempre o povo que andou à frente do clero. Sem complexos.

Isto ficou bem evidente na edificação da Capelinha das Aparições, dois anos após o 13 de maio de 1917. Foi construída por vontade popular e nasceu às mãos de um humilde pedreiro da região chamado Joaquim Barbeiro: iniciou a tarefa a 28 de abril de 1919 e deu-a por concluída a 15 de junho desse ano.

A capelinha, segundo a tradição, ergue-se mesmo local onde se situava a pequena azinheira onde segundo os pastorinhos Nossa Senhora lhes terá aparecido inicialmente. Poucos meses depois, dessa árvore quase nada restava: os populares foram-se encarregando de retirar-lhe folhas e ramos, pedaço após pedaço, guardando-os como relíquias. E uns carbonários oriundos de Santarém cortaram o que restava do tronco na noite de 23 de outubro de 1917, passeando-o de seguida em «procissão» na capital do Ribatejo.

A primeira missa foi ali rezada, já com autorização episcopal, a 13 de outubro de 1921. Aos poucos, a Igreja reconhecia a dimensão espiritual de Fátima.

Movimentações anticlericais

As movimentações populares surgidas de forma espontânea em Fátima incomodavam o Governo republicano, fortemente anticlerical. A imprensa republicana de cariz mais ideológico, ligada à Maçonaria e à Carbonária, procurou mobilizar a opinião pública contra aquilo que denominava de «fenómenos de superstição». Destacaram-se, nesta campanha, o jornal O Mundo, órgão oficial do Partido Democrático, de Afonso Costa, e organizações como a Federação Portuguesa do Livre Pensamento.

Ainda em 1917 estes sectores chegam a organizar uma «peregrinação laica» a Ourém e Fátima, com vistosa escolta da Guarda Nacional Republicana, após o chamado «milagre do sol». Uma ocorrência esporádica que em nada travou as movimentações populares.

O ministro do Interior, António Maria da Silva, chegou a proibir manifestações de índole religiosa em Fátima. Isto levou a imprensa católica, já sem as reservas dos primeiros meses, a apelar abertamente à desobediência civil.

«Vamos lutar contra o Governo», chegará a escrever o jornal O Dia, de orientação católica. Nada de semelhante ocorria noutras zonas do País, nomeadamente nos santuários do Bom Jesus e do Sameiro em Braga, apesar da intolerância religiosa do Governo republicano.

Atentado contra a capelinha

O regime republicano tentou por todas as vias impedir as concentrações populares em Fátima, recorrendo sem cerimónias às forças da GNR para o efeito. Sempre em vão.

Perante a indiferença da polícia, ativistas maçónicos acercavam-se dos peregrinos, insultando-os e por vezes agredindo-os. Em nome do «livre pensamento», o que não deixa de ser irónico.

O ponto culminante desta campanha ocorreu a 6 de maio de 1922, quando a capelinha das aparições foi parcialmente destruída por uma bomba. Por autorização eclesial, já ali era celebrada missa desde 13 de outubro de 1921.

O atentado causou generalizada indignação: as bombas haviam sido colocadas nos quatro cantos da capela, com a intenção deliberada de reduzi-la a escombros. Mas nem todas eclodiram. E os bombistas alcançaram os efeitos opostos aos que pretendiam: a capela foi rapidamente reconstruída, sempre por exclusiva vontade da população devota, e cada vez mais peregrinos acorreram desde então a Fátima.

As multidões foram engrossando, sobretudo nas duas datas consideradas mais relevantes: 13 de maio e 13 de outubro. Na segunda metade da década de 20 já ali se juntavam todos os anos entre 100 mil e 200 mil peregrinos. A 13 de outubro de 1922 começa a publicar-se o jornal Voz de Fátima.

A imagem da Virgem

Para a devoção mariana em Fátima muito contribuiu a imagem da Virgem Maria, esculpida em Braga, em 1920, pelo escultor José Ferreira Thedim e benzida nesse mesmo ano, a 13 de Maio, na igreja paroquial de Fátima, dando entrada na capelinha das aparições um mês mais tarde.

A imagem de madeira, em cedro do Brasil, tem 1,10m de altura e serviu de modelo a milhares de outras que desde então foram esculpidas um pouco por todo o mundo.

As reportagens da imprensa católica – designadamente o jornal católico Novidades, lançado em dezembro de 1923 – permitem-nos hoje traçar inúmeras semelhanças entre as peregrinações desses anos pioneiros e as atuais.

Nessa época, tal como hoje, as celebrações de 13 de maio e 13 de outubro eram dominadas pela récita do terço, as peregrinações a pé em cumprimento de promessas, a procissão das velas (na noite anterior), missa, bênção dos doentes e o impressionante adeus à imagem de Nossa Senhora com largos milhares de lenços agitando-se no ar.

Faltava à época apenas a edificação da basílica, que começou a ser erigida em 1928, com a primeira pedra a ser benzida pelo arcebispo de Évora ainda antes do reconhecimento eclesial das aparições de Fátima. Seria solenemente inaugurada só em 1953.

A diocese restaurada

Peça fundamental, no processo de Fátima, foi a restauração da Diocese de Leiria pelo Papa Bento XV em 17 de janeiro de 1918. Tinha sido extinta em 1882.

Em 15 de maio de 1920, a diocese passa a ter bispo titular: D. José Alves Correia da Silva – que se manteria naquela função até à sua morte, em dezembro de 1957. Este prelado foi essencial no reconhecimento das aparições de Fátima, em que sempre acreditou.

D. José abriu o processo canónico destinado a validar as aparições em 3 de maio de 1922. A 24 de agosto de 1925 crismou Lúcia, única sobrevivente dos três pastorinhos. E a 26 de junho de 1927 presidiu pela primeira vez a uma cerimónia oficial na Cova da Iria, após a bênção das estações da Via Sacra desde o Reguengo do Fetal, situado a 11 quilómetros.

O prelado vai insistindo, sempre que pode, para que o processo de Fátima acelere. Argumenta que o povo católico já tinha “confirmado” a veracidade das aparições.

A Divina Providência

O longo processo de reconhecimento das aparições com o beneplácito eclesial viria a terminar só em 13 de outubro de 1930. Ocorreu com a aprovação da carta pastoral A Divina Providência, na qual o bispo de Leiria considera “dignas de crédito as visões das crianças da Cova da Iria” e autoriza oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima.

Nesse mesmo mês, o Papa Pio XI concede indulgências plenárias aos peregrinos. O reconhecimento oficial tinha demorado 13 anos. Muito mais do que a chancela eclesiástica às aparições de Lourdes, que ocorreram em 1858 e foram validadas logo em 1862.

A 13 de maio de 1932, os bispos portugueses reúnem-se pela primeira vez em Fátima participando numa peregrinação de carácter nacional à Cova da Iria, que segundos relatos da imprensa da época terá reunido cerca de 300 mil pessoas.

“Não foi a Igreja que impôs Fátima, mas foi Fátima que se impôs à Igreja”, reconheceria mais tarde D. Manuel Gonçalves Cerejeira, cardeal-patriarca de Lisboa. De facto, Fátima impusera-se definitivamente à Igreja. Como se impusera ao País, contra ventos e marés. Como viria a impor-se ao mundo.