Lúcia
IRMÃ LÚCIA: NA SOMBRA E NO SILÊNCIO
Lúcia de Jesus Rosa dos Santos (1907-2005), a mais velha dos três videntes de Fátima, viveu grande parte da sua vida longe dos olhares do mundo. Primeiro no internato do Colégio do Vilar, das irmãs doroteias, no Porto (1921-25). Depois, já como religiosa, na Galiza (1925-48). Enfim, a partir de 1948, como freira de clausura no Convento das Carmelitas Descalças, em Coimbra.
Mas nem pelo facto de ter feito voto de silêncio – raras vezes quebrado nas seis décadas seguintes – deixou de merecer as atenções mediáticas: largos milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo muita gente que nunca veio a Portugal, conhecem o seu nome e o acontecimento extraordinário a que ficará para sempre associado.
Visita de Mel Gibson
Uma prova desta popularidade – mesmo contra a vontade da ex-pastorinha de Fátima, que sempre evitou a luz dos holofotes – ocorreu já quase no fim da sua vida, ao receber a visita no Carmelo de Coimbra de um dos nomes mais célebres de Hollywood: o actor e realizador Mel Gibson, que se deslocou por duas vezes ao convento em 2004. Na primeira deslocação, durante a Quaresma, exibiu para as freiras o seu filme A Paixão de Cristonuma sala improvisada para o efeito e recorrendo a um ecrã portátil de grandes dimensões ligado a uma coluna de som. Tudo para ali transportado por elementos da produção da película, então recém-estreada.
No final dessa sessão, segundo revelaria mais tarde a Catholic News Agency, norte-americana, Gibson permaneceu durante cerca de uma hora em diálogo com as religiosas, respondendo às perguntas que lhe fizeram, incluindo a Irmã Lúcia. O cineasta católico voltaria em Julho ao convento para um encontro privado com a vidente, a seu pedido.
Apresentada ao mundo
Foi Paulo VI quem, de algum modo, apresentou Lúcia ao mundo durante a visita-relâmpago que fez à Cova da Iria, a 13 de Maio de 1967, para se associar pessoalmente ao cinquentenário das aparições de Fátima. A vidente surgiu ao lado do Sumo Pontífice no altar: essa foi a primeira ocasião em que a esmagadora maioria das pessoas pôde enfim observá-la, envolta no seu hábito de freira carmelita.
Nunca uma multidão tão grande se reunira em Fátima como naquele dia que começou chuvoso. A imprensa falaria em mais de um milhão de pessoas reunidas no vasto recinto do santuário e nas áreas adjacentes. Quando Lúcia foi apresentada aos peregrinos pelo líder da Igreja Católica, soaram fortíssimos aplausos.
“Paulo VI, sentado no trono, recebeu carinhosamente Lúcia, que ajoelhou e beijou os pés do Santo Padre. Depois, durante cerca de um quarto de hora, falou com o Papa”, escreveria na edição do dia seguinte o Diário de Notícias. Uma conversa que exigiu a intermediação do bispo de Leiria, que serviu de tradutor, uma vez que Lúcia “não falava o italiano”.
Muito antes e muito depois dessa data que inscreveu definitivamente Fátima no mapa do mundo, diversos jornalistas das mais diversas proveniências tentaram entrevistar a pastorinha sobrevivente. Mas Lúcia – proibida de falar sem uma autorização especial do Vaticano – permaneceu quase sempre distante dos olhares públicos, exceto em três novas visitas papais a Portugal – em 1982, 1991 e 2000.
70 mil cartas
Isto nunca impediu a religiosa de manter uma intensa produção epistolar. Correspondeu-se com milhares de pessoas – desde logo com vários Papas, de Pio XII a João Paulo II.
Lúcia – sabe-se hoje – enviou para o Vaticano, por intermédio do bispo de Leiria, a chamada terceira parte do Segredo de Fátima, com a indicação expressa de que não fosse tornado público antes de 1960. No Verão desse ano, o Papa João XXIII fez saber que não o divulgaria – decisão igualmente assumida pelo seu sucessor, o Papa Paulo VI. O silêncio só foi quebrado no termo do milénio, em 2000.
A vidente também se correspondeu com reis, príncipes, cardeais, bispos, estrelas de cinema. E com a Nobel da Paz Madre Teresa de Calcutá, o fundador da Opus Dei, monsenhor Escrivá de Balaguer, e o seu sucessor, Álvaro del Portillo. E membros de outras congregações religiosas. E gente anónima. Segundo a irmã Ângela Coelho, vice-postuladora da causa de canonização da vidente, terá recebido durante as décadas de clausura mais de 70 mil cartas, a que deu sempre resposta. Quando faleceu, em Fevereiro de 2005, tinha no seu arquivo pessoal mais de 11 mil missivas, que estão a ser devidamente analisadas e organizadas.
Uma entrevista polémica
Muita controvérsia gerou a longa e angustiada entrevista que lhe fez a 26 de Dezembro de 1957 o padre mexicano Agustín Fuentes, na qualidade de postulador das causas da beatificação de Francisco e Jacinta Marto. Largos trechos da entrevista, realizada no convento de Coimbra, foram divulgados numa palestra do sacerdote, após aprovação do bispo de Leiria, na casa-mãe das Irmãs Missionárias do Sagrado Coração e de Nossa Senhora de Guadalupe. O conteúdo da palestra mereceu larga difusão, primeiro nos meios de informação mexicanos e mais tarde no conjunto da imprensa internacional.
O padre Fuentes atribuiu a Lúcia as seguintes declarações:
“A Santíssima Virgem está muito triste por ninguém fazer caso da Sua Mensagem, nem os bons nem os maus.”
“Deus vai castigar o mundo, e vai castigá-lo de uma maneira tremenda. O castigo do Céu está iminente.”
“O que falta para 1960? E o que sucederá então? Será uma coisa muito triste para todos e não uma coisa alegre, se antes o mundo não fizer oração e penitência.”
“O que aflige o Imaculado Coração de Maria e o Sagrado Coração de Jesus é a queda da alma dos religiosos e dos sacerdotes. O demónio sabe que os religiosos e os sacerdotes que deixam a sua bela vocação arrastam numerosas almas para o inferno.”
“Os meus primos Francisco e Jacinta sacrificaram-se porque, em todas as aparições da Santíssima Virgem, sempre A viram muito triste. Nunca nos sorriu. Esta tristeza, esta angústia que notámos n’Ela, penetrou nas nossas almas. Esta tristeza é causada pelas ofensas contra Deus e pelos castigos que ameaçam os pecadores. E assim nós, crianças, por não sabermos o que fazer, inventávamos várias maneiras de rezar e de fazer sacrifícios.”
Estas declarações suscitaram polémica e até algum alarmismo sobretudo na parte referente aos perigos que pairavam sobre o mundo a partir de 1960 – e que estariam relacionados com o chamado “terceiro segredo” de Fátima.
A 2 de Julho de 1959, a chancelaria da cúria episcopal de Coimbra difundiu um comunicado pondo em causa a credibilidade do padre Fuentes e as declarações atribuídas à vidente. O sacerdote acabaria por ser destituído do cargo de postulador das beatificações dos pastorinhos. Mas é hoje evidente que, no essencial, as afirmações atribuídas a Lúcia correspondem ao essencial do pensamento da religiosa.
Elogio a Gorbatchov
O facto é que as visitas a Lúcia tornaram-se ainda mais restritas depois deste episódio. O silêncio só voltaria a ser quebrado muito mais tarde – e deixando novamente um rasto de polémica – noutra entrevista, também em forma de diálogo com membros da Igreja. Neste caso, o cardeal indiano Anthony Padiyara, o bispo indiano Francisco Michaelappa e o padre brasileiro Francisco Pacheco, acompanhados do investigador luso-canadiano Carlos Evaristo, que serviu de tradutor neste encontro, ocorrido a 11 de Outubro de 1992.
Sobre as mudanças ocorridas na Rússia:
“As pessoas agora estão livres para escolher e de facto muitas conversões estão a acontecer; aquele homem na Rússia [Gorbatchov], sem saber, foi um instrumento de Deus na conversão.”
Sobre o “terceiro segredo” de Fátima:
“Não é para ser revelado. O Papa pode revelá-lo se quiser, mas eu aconselho-o a não revelar o segredo. Se ele assim o quiser, eu sugiro-lhe grande prudência. Ele precisa de ser prudente.”
Palavras que lhe são atribuídas nesta entrevista, que viria a ser divulgada sob o título Duas Horas com a Irmã Lúcia num opúsculo de Carlos Evaristo, que gerou polémica entre meios católicos integristas. Chocados, nomeadamente, com a linguagem desenvolta atribuída à vidente.
Lúcia apareceu pela última vez em público na Cova da Iria a 13 de Maio de 2000. Escutando, a curta distância, o sermão ali proferido por João Paulo II na cerimónia solene de beatificação dos dois pastorinhos – seus primos – desaparecidos tantos anos antes.
“O louvor de Jesus toma hoje a forma solene de beatificação de Francisco e Jacinta. A Igreja quer, com este rito, colocar sobre o candelabro estas duas candeias que Deus acendeu para iluminar a humanidade nas suas horas sombrias e inquietas... Que a mensagem das suas vidas permaneça sempre viva para iluminar o caminho da humanidade.”